Em 1993, morreu um jovem ator que já há quase uma década provocava boas impressões nos críticos e era apontado como um dos maiores guardiões do futuro de Hollywood, poucos meses depois da estréia de seu último trabalho, a comédia dramática “Um Sonho, Dois Amores”. Morreu de overdose em frente a uma boate de propriedade de seu amigo Johnny Depp. Se tornara conhecido em 1986, quando deu vida a um dos garotos inesquecíveis de “Conta Comigo”, e seguira com papéis cada vez maiores em filmes progressivamente mais ousados até chegar ao estrelato absoluto com o drama “Garotos de Programa”, de Gus Van Sant (“Gênio Indomável”). Seu nome era River Phoenix, tinha vinte e três anos. Naquela época, seu irmão mais novo (quatro anos os separavam) ainda atuava sob o nome de Leaf Phoenix como coadjuvante juvenil em filmes como “O Tiro que Não Saiu Pela Culatra”. Foi a morte do irmão e o trauma da desconexão com os pais que fez Leaf romper com o passado hippie da família e se lençar de uma vez por todas na carreira que seguira até então sob o pseudônimo de Joaquin Phoenix. Se hoje estamos aqui, é porque deu certo. Mas ninguém poderia imaginar o quanto. Para um jovem com uma cicatriz de nascença bem visível e tendências nada convencionais, Joaquin foi longe. Desde que “Um Sonho Sem Limites” abriu as portas de Hollywood para este grande ator, foram treze anos e vinte produções que quase sempre conseguiam casar prestígio crítico com aprovação comercial. Aos poucos, o nome de Joaquin Phoenix se tornou sinônimo quase indissociável de um empreendimento bem-sucedido. Ele não se rendeu a indústria do cinema, não abriu mão de fazer as próprias escolhas e pouquíssimas vezes errou o alvo. Treze anos de prestígio acumulado, e agora tudo isso estará a serviço… do rap.
Ele já anunciou: “Two Lovers” o romance dramático em que faz par romântico com Gwyneth Paltrow (“Shakespeare Apaixonado”) sob o comando do amigo James Gray (“Os Donos da Noite”), é seu últimos trabalho como ator. O filme nem mesmo estreou no Brasil, o que deve acontecer em Abril, mas é difícil falar das novidades do cinema ou abrir um site especializado sem ver seu nome nas manchetes principais. Isso porque ele deixou a barba crescer, não abre mão de esconder os olhos verdes por trás dos óculos escuros e vive aparecendo com ternos surrados e gravatas mal-ajustadas por aí. Os rumores só foram endossados por uma bizarra entrevista do ator/rapper no programa do americano David Letterman, em que se mostrou distraído, desinteressado e de alguma forma etéreo, quase como se estivesse em outro planeta. Só esboçou um sorriso, e não foi à toa. Letterman, ao fim do programa, soltou a frase “gostaria de agradecer a ausência de Joaquin Phoenix no nosso programa”. Se é uma jogada de marketing, loucura repentina ou mudança séria de comportamento, só o tempo nos dirá. O fato é que nunca houve ocasião mais oportuna para dar uma olhada de perto na carreira grandiosa de um ator que sempre vale a pena ver em frente as câmeras, mesmo que pela última vez.
Filmografia parcial e comentada:
- Um Sonho sem Limites (To Die For, Inglaterra/EUA, 1995)
A ironia hollywoodiana em sua representação maior. O mesmo diretor que revelou River para o mundo guia o irmão mais novo ao estrelato nesse filme inclassificável que passeia por comédia, policial, drama e suspense em arrasadores 106 minutos. Mas uma vez fazendo jus a seu apelido de “diretor americano mais europeu da atualidade”, Gus Van Sant (“Gênio Indomável”) guia com ritmo e graça a história de uma ambiciosa e linda mulher do tempo de uma pequena emissora de televisão no coração da América. No auge da beleza, Nicole Kidman (“Moulin Rouge”) exala sensualidade e passa pela tela como um furacão, fazendo em pedaços a vida de qualquer um que se coloque em seu caminho em busca pelo status de celebridade. O jovem Joaquin é um adolescente desequilibrado, vândalo e sem rumo na vida com quem ela se envolve mirando sua falta de princípios morais e o obrigando mais tarde a realizar o que ela mesma chama de “crime perfeito”. O filme é todo Nicole, inclusive lhe rendendo um já tardio Globo de Ouro de Melhor Atriz, mas Joaquin impressionou com seu retrato perturbador de um personagem que acabava tão fascinante quanto a protagonista. O Chlotrudis Awards, um pequeno festival de filmes independentes realizado em Massachussetts, foi pioneiro em reconhecer o trabalho do ator com uma indicação. O prêmio foi faturado por Kevin Spacey e seu trabalho em “Os Suspeitos”, mas ali estava nascendo um astro.
- 8MM (8MM, EUA/Alemanha, 1999)
Nenhum ator escapa de escolhas ruins. Em 1999, faziam quatro anos desde que Joaquin Phoenix havia surgido como o próximo grande talento de Hollywood. Nesses quatro anos, seu nome foi visto em um romance bobinho e mal-sucedido (“Círculo de Paixões”), um thriller intenso e massacrado pela crítica (“Reviravolta”), como coadjuvante em um drama que passou despercebido (“Pela Vida de Um Amigo”) e, finalmente, em uma comédia de humor negro absolutamente incompreensível que nem chegou ao Brasil (“Clay Pigeons”). O que ele precisava naquele momento era de um sucesso comercial e de um personagem que o marcasse não apenas na lista dos críticos, como na memória od público. Perigoso, subversivo e ainda assim incrivelmente comercial, “8 MM” pareceu-lhe a escolha perfeita. Seu personagem não era nada além de uma âncora para as investigações do detetive interpretado por Nicolas Cage (“A Lenda do Tesouro Perdido”), mas tinha uma caracterização que marcaria na memória fácil e, afinal, ele poderia passar alguns meses de divertindo em um set de filmagens, para variar. O problema, como sempre, foi Joel Schumacher (“Batman & Robin”), que carregou demais no tom sério e escondeu a interpretação sempre sarcástica de Joaquin sob toneladas de climatização mal-elaborada e uma exploração pífia do mundo sujo dos snuff movies (filmes ilegais em que os atores são de fato mortos em cena). Ficou o legado de uma bilheteria razoável e a súbita desconfiança em relação as escolhas seguintes do ator.
- Gladiador (Gladiator, Inglaterra/EUA, 2000)
Não raro, Ridley Scott (“Blade Runner”) é um divisor de águas na carreira dos atores que se arriscam a embarcar em suas produções. A bem da verdade, não era apenas impossível mas também improvável imaginar que “Gladiador” seria a obra-prima definitiva de um mestre incontestável em sua incansável busca pela perfeição. Mais do que isso, que seria o épico romano que renasceria no público o interesse por esse tipo de filme e que renderia seus impressionantes 400 milhões ao redor do mundo. Muito menos que seria agraciado com dez indicações para o Oscar e anos depois figurasse em todas as listas de obras maiores do nosso século. Eventualmente, aconteceu. Não é subestimar o talento de quem estava envolvido, que fique claro, mas tantos filmes com a mesma qualidade Scott já produziu que é um pouco difícil enxergar uma razão especial para “Gladiador” ter sido o mais notado deles. Polêmicas a parte, a história de um homem com a vida arrasada em busca de vingança na oligárquica Roma antiga foi o ponto definitivo para dois atores em ascenção. O primeiro, Russell Crowe, que se tornou um astro e um homem oscarizado com a obra de Scott. E então, aqui estamos contemplando o Commodus de Joaquin Phoenix. Para começar, não é uma interpretação padrão para o tipo de personagem histórico, muito menos para um imperador. É, sim, uma combinação compleza de frieza, ímpeto, inveja e detalhismo, ingredientes perfeitos para construir um vilão tão marcante quanto o proverbial herói dessa ambígua jornada. Commodus é respulsivo, sim, mas é acima de tudo humano. E assim Joaquin Phoenix conquista de assalto Hollywood.
- Guerreiros Buffalo (Buffalo Soldiers, Inglaterra/EUA, 2001)
É sempre bom lembrar que, acima de tudo, astros de Hollywood são teimosos. Assim como é sempre bom avisar que teimosia nem sempre é algo ruim. Em 2001, Joaquin Phoenix era um astro já razoavelmente estabelecido, do alto de seus vinte e sete anos, livre da sombra de seu irmão e admirado pelo próprio trabalho sem que todos ficassem sempre se lembrando de seu passado. E ele já havia se arriscado na comédia de humor negro antes, saindo-se com o horroroso “Clay Pigeon”, uma rede de intrigas que não conseguia nem mesmo se fazer entender, que dirá estampar o sorriso no rosto do espectador. Nada poderia dar a entender que “Buffalo Soldiers” seria diferente. O diretor Gregor Jordan ainda era conhecido apenas em seu país, a Austrália, pelo intrigante thriller “Two Hands”. O livro em que o roterio se baseara era desconhecido, contando a estranha história de uma base militar americana secreta instalada na Alemanha Oriental, comandada por um fora-da-lei boa-praça que transformou o lugar em um antro de comércio ilegal e tráfico de drogas. A rede de intrigas torna-se maior e mais confusa quando um novo sargento chega ao lugar com a missão de limpar a sujeira e o protagonista se apaixona pelo filha deste enquanto precisa lidar com sua ex-mulher, uma desvairada traficante de cocaína. A confusão dos diabos poderia resultar em um caos, mas a anaquia das piadas e a relevância da trama chamou a atenção dos críticos enquanto Joaquin angariou mais indicações para prêmios cinematográficos independentes. É um filme que ainda merece ser descoberto pelo público.
- A Vila (The Village, EUA, 2004)
“A Vila” é um exemplo clássico de filme que nasceu fora de seu tempo. O suspense criticado do indiano M. Night Shyamalan (“O Sexto Sentido”) é uma crítica impiedosa a hipocrisia da sociedade e um filme de ambientação impecável capaz de provocar arrepios e pura adrenalina em alguns momentos. É o reflexo mais perfeito do talento imenso de um diretor que hoje se vê preso na burocracia hollywoodiana e produzindo obras que ele próprio despreza por não terem sido feitas para si mesmo. “A Vila” foi seu último suspiro de originalidade e beleza, mas ninguém entendeu. Isso porque é um suspense a moda antiga, que não apela para sustos fáceis e surpresas irreais e ainda assim consegue provocar tensão como poucas outras obras nos últimos anos. E é também um estudo profundo de personagens. A garota cega de Bryce Dallas Howard (“Homem-Aranha 3”) funciona como a encarnação do público na tela, mas é quando nos deparamos com a honra do aldeão apaixonado Lucius Hunt que fica clara a habilidade do diretor em construir serem humano reais para viverem jornada extraordinárias e transformadoras. E esse ser humano é representado com gosto e honestidade por Joaquin Phoenix, que exala fantática normalidade e torna “A Vila” não apenas em uma experiência cinematográfica mais interessante, como também em um tomo tranformador sobre a própria natureza humana. Um roteiro sem atores não funciona, e por mais que Shyamalan tenha seus méritos nesse filme ainda subestimado, é seu protagonista que representa melhor tudo o que a trama quer passar ao espectador.
- Johnny & June (Walk the Line, EUA/Alemanha, 2005)
Foi como se dois se unissem em um. De repente, Joaquin Phoenix era Johnny Cash e Johnny Cash era Joaquin Phoenix. Era um filme, mas de repente uma imagem ficou para sempre indissociável da outra. Para alguém que se interessou pelo trabalho country de uma das maiores lendas da música americana depois de ver o filme dirigido por James Mangold (“Garota, Interrompida”), é quase um ultraje imaginar o homem de preto tendo sua vida interpretada por outra pessoa. Ainda mais do que Jamie Foxx e sua premiada performance como Ray Charles, foi o gigantesco Joaquin Phoenix quem deu a confusão de personalidades uma representação definitiva. Ele incorporou cada trejeito, cada tom de voz e cada pequeno gesto no palco, quis saber de cada expressão e de cada palavra que já fora publicada ou falada por ele e o resultado foi uma indicação ao Oscar e uma derrota que muita gente achou injusta. Mas sua interpretação vai além de prêmios, chega a categoria de lendária e inesquecível porque foi o suspiro mais alto e marcante de um ator excepcional e, acima de tudo, foi algo sobrenatural. É a interpretação detalhista e não menos que perfeita de Joaquin que dá a “Johnny & June”, o filme em questão, aquele tom de documentário poético que predomina em todos seus 136 minutos. Se esse ingrediente é o fundamental para o filme possuir uma mágica tão diferenciada, então foi Joaquin Phoenix o mestre que preparou toda a receita. Ele não é um ator interpretando Johnny Cash. Ele é Johnny Cash. Só quem viu sabe.
- Os Donos da Noite (We Own the Night, EUA, 2007)
O cineasta e roteirista James Gray merece um capítulo a parte na história do cinema no nosso recém-começado século. Não que ele seja um grande diretor, mas há algo de diferente e espetacular em sua forma de filmar que é capaz de hipnotizar o espectador e fazer dos personagens alvo da mais sincera e profunda afeição. A paixão do diretor por histórias trágicas e policiais apenas acrescenta mais um ingrediente vitorioso na receita de sua forma de filmar a moda antiga. Primeiro veio “Caminho sem Volta”, em 2000, uma paquena pérola que por pouco não passou despercebida pelo público. E então, sete anos depois, ele chama de volta os dois protagonistas de seu filme anterior para estrelar esse “Os Donos da Noite”. É impossível negar a esperteza do diretor. O roteiro do filme, de sua própria autoria, é uma história familiar intensa e envolvente, um estudo profundo de personagens radicalmente diferentes que, cada um com suas nuances, partem fácil para o rol de mais bem desenvolvidos dos últimos anos. Mark Wahlberg (“Atirador”) surpreende como o policial certinho e irritadiço que acaba se mostrando o completo oposto de seu irmão, dono de uma casa noturna cheia de atividades ilegais. É aí que entra o conflitante Joaquin Phoenix, espantosamente habilidoso ao compor um personagem que esconde a si próprio de quem está a sua volta e acaba tornado-se em um ser humano amargurado que não sabe bem o que fazer da vida e perde tudo em um piscar de olhos. É impossível imaginar “Os Donos da Noite” sem aqueles dois atores, naquele momento. O filme certo, na hora certa, eficiente e marcante como poucos.
Bom, pessoal, e é por aqui mesmo que se encerra nosso primeiro especial focado em um ator! E aí, gostaram? Estou ansioso para ver as reações, esse tipo de postagem podem se tornar no mínimo periódicas por aqui, caso o formato seja aprovado. Escolhi Phoenix não apenas pela visibilidade atual, mas também porque realmente o considero um dos melhores atores por aí. Bom, além disso, é claro, preciso me desculpar pela falta de críticas aqui no blog, mas o caso é que precisei formatar meu computador e agora estou esperando para o Office (e o Word, onde escrevo minhas críticas) seja instalado… Espero a compreensão de vocês mais uma vez. Por enquanto, os melhores filmes para todos vocês e até mais!