O Festival de Cannes surgiu de uma ação audaciosa, arriscada até, de um homem que queria separar arte de política e, especialmente, de guerra. Este homem se chamava Jean Zay, o último ministro da educação francês a tomar posse antes da invasão alemã durante a Segunda Guerra. Antes de ser deposto e morto por militantes, porém, Zay se viu chocado com a interferência do fascismo na seleção de filmes para o Festival de Veneza, hoje um dos maiores do circuito, e decidiu criar um evento cinematográfico mundial sediado na França. É claro, os planos de criar uma festa para o cinema mundial em terras Aliadas ficou para depois quando os alemãos invadiram a França e o restante da Europa oriental, e apenas por volta em 1946, após a derrota do III Reich, é que o festival foi ressucitado.
Pode parecer estranho para quem vê a Palma de Ouro, maior prêmio do festival, como algo definitivo demais, mas o primeiro grande prêmio de Cannes foi repartido entre nada menos que onze produções de nacionalidade diferentes. A seleção, ao passar do tempo, foi naturalmente se afunilando, mas o troféu foi dividido pelo menos outras oito vezes ao decorrer desses 62 anos em que Cannes tomou o posto de maior festival do mundo em termos de cinema e ponto de encontro de todo o tipo de gente envolvida na sétima arte, dos astros de Hollywood ao diretor mais inexperiente. Em suma, é um ponto de encontro para quem tem talento e vontade de contribuir para o crescimento da arte de contar histórias através da imagem e do movimento. Não importa o status, Cannes é o lugar do notável, do espetacular e do fantástico. Duas semanas de sonho para qualquer cinéfilo. É melhor ficar de olho aberto.
Antes…
Começou-se a falar de Cannes 2009 já no segundo dia do ano, quando o primeiro comunicado dos oragnizadores do Festival veio para, mais do que apenas definir a presidente do júri da edição, selar um namoro antigo que já havia rendido dois prêmios em edições anteriores. A atriz francesa Isabelle Huppert, conhecida do público brasileiro pelo trabalho em 8 Mulheres e na comédia Huckabees, já levou para casa dois troféus de melhor atriz concedidos pelo célebre festival francês, o mais recente pelo desempenho em A Professora de Piano, filme do austríaco Michel Haneke (Caché). Ao receber a notícia, Isabelle deu o seguinte pronunciamento: “Estou muito feliz e orgulhosa. A história entre mim em Cannes é antiga e isso selará definitivamente meu amor pelo festival e pelo cinema mundial”. Adepta dos filmes independentes e constante parceira de cineastas estreantes, a escolha de Huppert para fazer a seleção de filmes a serem exibidos e ainda organizar as votações para os prêmios do ano demonstrou, como disseram quase todos os cinéfilos e críticos por aí, a vontade obstinada que Cannes sempre teve para permanecer atual e relevante. Ao lado dela no júri foram mais tarde anunciados os nomes das atrizes Asia Argento (A Última Amante) e Robin Wright-Penn (A Lenda de Beowulf), dos cineastas Nuri Bilge Ceylan (Três Macacos), Lee Chang-Dong (Sol Secreto) e James Gray (Os Donos da Noite).
É de fato uma pena que a escolha de Huppert tenha vindo em uma época tão complicada para esse tipo de festa do entretenimento, que por algum motivo tende a funcionar melhor quando o mundo não está alarmado por uma crise financeira global. A preocupação, para Cannes, não chegou a se refletir na seleção de filmes e certamente não será fator decisivo para a concessão da Palma de Ouro, mas acabou colocando os organizadores do festival em estado de alerta. Tanto que, em Abril, três meses depois do começo das novidade sobre o Festival, foi liberada na Internet a notícia de que Cannes 2009 seria dominado pela sobriedade e pela ponderação no glamour, uma vez que pela primeira vez o festival não conseguiu patrocínio, público ou particular. Os hotéis, a época, já estavam lotados para a ocasião, mas mesmo o maior dos eventos cinematográficos é incapaz de escapar de um crise que afeta todos os ramos e segmentos da economia. Ainda assim, para que gosta de bom cinema, Cannes continua sendo o mais perto do paraíso que se pode alcançar. Com ou sem crise.
Prova disso é o grande evento para os sites especializados no qual se transformou o progressivo anúncio da seleção de filmes para o ano, que começou com o anúncio de Up – Altas Aventuras, novo longa da Pixar, como o primeiro filme em animação a abrir o festival. E mais, a obra também marca a primeira exibição em 3D feita em qualquer festival de cinema do mundo. O diretor geral do festival, Thierry Frémaux, se pronunciou sobre o assunto: “Estamos muito felizes de que um filme em 3D abra o Festival de Cannes, já que se trata de uma das aventuras que o cinema oferecerá em um futuro próximo. Além disso, estamos orgulhosos de receber o estúdio Pixar, seu brilhante universo, seus diretores e seus produtores talentosos”. No anúncio das outras obras que comporiam as duas semanas de festival, Cannes surpreendeu e entregou o esperado na mesma medida, selecionando diretores consagrados e outros nem tanto para competir pelo prêmio principal. A produção mais esperada da lista principal é “Inglorious Basterds”, nova obra de Quentin Tarantino (Kil Bill), ambientada no contexto da Segunda Guerra e estrelada por Brad Pitt (Benjamin Button), mas vários outros diretores com história em Cannes estão na seleção. Os destaques:
- Pedro Almodóvar, que concorreu por Volver e até ganhou o prêmio de melhor diretor por Tudo Sobre Minha Mãe, retorna três anos depois, e de novo ao lado de Penélope Cruz (Vicky Cristina Barcelona) com o drama Los Abrazos Rotos, sobre um homem que cai em depressão após perder a mulher em um acidente de carro.
- Jane Campion, conhecida por aqui como a diretora de O Piano e primeira mulher indicada a um Oscar na categoria de direção, volta treze anos depois de vencer a Palma de Ouro pela obra já citada e tem notoriedade garantida com Bright Star, drama romântico sobre o romance de uma mulher com o poeta John Keats no século XIX.
- Isabel Coixet, cujo primeiro trabalho hollywoodiano, o suspense Fatal, foi lançado em DVD por aqui, é a estreante da vez no festival francês e chega com um thriller dramático sobre um vendedor de peixes que trabalha também como assassino profissional. Map of the Sounds of Tokyo é estrelado por Rinko Kikuchi (Babel).
- Michael Haneke, que tem três indicações a Palma de Ouro e levou um trio de troféus secundários em 2005 por seu suspense psicológico Caché, voltou a Áustria e filmou The White Ribbon, drama pesado de guerra sobre o fascismo e como ele afetou a educação na Alemanha da época da Primeira Guerra.
- Ang Lee, que por incrível que pareça tem apenas uma nominação, e por Tempestade de Gelo, retorna com força e polêmica ao contar a história do lendário Festival de Woodstock, o auge da filosofia hippie. Taking Woodstock conta com um elenco estrelado se arriscando em papéis polêmicos e provocou reações contraditórias nas primeiras exibições públicas.
- Ken Loach parte para sua nona indicação a Palma de Ouro e vem forte a vitória de Ventos da Liberdade em 2006. Looking for Eric soa como o tipo de filme motivacional que Gus Van Sant faria nos anos 1990, a história de um jovem jogador de futebol que encontra um lendário craque do passado e descobre que ainda tem muito o que aprender.
- Chan-Wook Park, o homem que acordou a Coréia do Sul para a produção cinematográfica e viu sua “trilogia da vingança” explodir mundo afora, volta ao seu ambiente de suspense e chega com Thrist cotado como um dos filmes mais esperados da seleção. A história é boa: um homem de fé é transformado em um vampiro ao servir de coabaia para um experimento científico.
- Lars Von Trier, o diretor mais polêmico e controverso do mundo, resolve provocar ainda mais furor ao imaginar o mundo governado pelo Demônio em pessoa e ainda coloca Willem Dafoe (Homem-Aranha) para interpretá-lo. O resultado é Antichrist, oitava indicação do cineasta a Palma de Ouro e terceira depois da vitória por Dançando no Escuro.
Uma lista de destaques bem grande para uma seleção oficial de vinte filmes, mas é fato que Cannes sempre trouxe o que há de mais fino, mais esperado e ao mesmo tempo mais alternativo no cinema. É claro, o festival não se resume a lista do prêmio principal, e Cannes 2009 reserva algumas surpresas fora da competição. Na seleção Um Certo Olhar, por exemplo, está À Deriva, novo filme do brasileiro Heitor Dhalia (O Cheiro do Ralo). Selecionado pela primeira vez para um festival internacional, Dhalia se pronunciou encantado: “Cannes é Cannes. Quem gosta de cinema sabe o que esta palavra significa. Estou muito, muito feliz em ter meu filme selecionado para o festival. A sensação é até meio surrealista. É como estar em um filme do Fellini”. De última hora, Um Sol Alaranjado, longa de estréia de Eduardo Valente que fez sucesso na mostra paralela no ano anterior, foi incluído na lista de sessões especiais. Lá também estão quatro curtas tupiniquins, dois da diretora Vera Egito, que participa da abertura (com Elo) e do fechamento (com Espalhadas pelo Ar) dos trabalhos em Cannes. Ao lado dela, Thiago Ricarte e seu Chapa são os representantes brasileiros na mostra de universitários. E Renata Pinheiro e seu Superbarroco participam da Quinzena dos Realizadores. Sob essa denominação, aliás, um par de outras surpresas apareceram no festival.
A primeira é a comédia I Love You Philip Morris, estrelada por Jim Carrey (Sim Senhor) e pelo brasileiro Rodrigo Santoro (Carandiru), sobre um casal gay que desafia a lei para permancer junto. A segunda é o novo filme do consagrado Francis Ford Coppola (O Poderoso Chefão), a saga familiar noir e auto-biográfica de Tetro, estrelado pro Vincent Gallo (Desejo Insaciável). A seleção de destaques fecha com The Imaginarium of Doctor Parnassus, nova obra de Terry Gilliam (Os Doze Macacos) e famoso “último filme” do falecido Heath Ledger, que precisou ser substituído por quatro outros atores para que o fim das filmagens. Ao lado de Parnassus fora de competição está Agora, novo longa de Alejandro Amenábar (Os Outros), estrelado dessa vez por Rachel Weisz (O Jardineiro Fiel). Michel Gondry (Rebobine, Por Favor) também leva sua última obra, o documentário The Thorn in My Heart, para o boulevard francês. E, por fim, Sam Raimi (Homem-Aranha) é o herói maldito do festival com seu novo Drag me to Hell, que fará parte da famosa “sessão da meia-noite” de Cannes. O Festival, que foi marcado para começar dia 13 de Maio e terminar dia 24, seria fechado com a estréia do esperado Coco Chanel & Igor Stravinsky, o filme que conta o caso de amor entre a famosa estilista e o célebre bailarino. Onze dias, dezenas de filmes e flashes sem parar para os astros que passariam pelo tapete vermelho. Cannes 2009 estava bom antes mesmo de começar.
Durante…
Aconteceu muita coisa em Cannes. Entre astros desfilando no tapete vermelho, obras autorais dividindo espaço com grandes estréias e coletivas de imprensa explosivas ao final de cada sessão, o festival foi provavelmente o centro do mundo cinematográfico durante os breves 11 dias durante os quais a cidade francesa recebeu atores, diretores, roteiristas, produtores, representantes de estúdios e jornalistas do mundo inteiro. Hollywood, por pouco tempo, ficou para trás e parecia que todas as notícias que valiam a pena ser lidas vinham de Cannes. Declarações de gente equilibrada e outras nem tanto, polêmicas que repercutiram nos noticiários e nas rodas cinéfilos mundo afora e, porque não, marcas que vão, de uma forma ou de outra, mudar a forma que o mundo vê cinema. Assim é Cannes, uma revolução e um espetáculo a cada ano, o centro de um furacão de ventos arrasadores que parece passar rápido demais. Um sonho cinéfilo tornado em realidade. Bem-vindos a riviére.
Primeiro dia: Quarta-Feira, 13 de Maio de 2009
Cannes, tradicionalmente, começa antes das luzes se apagarem na sessão de abertura. No início da tarde, horas antes de Up inaugurar a seleção, os nove componentes do júri oficial da edição 2009 do festival se reuniram para a apresentação oficial à imprensa. A impressão geral foi que o prêmio principal do ano, pelo qual o júri é responsável, seria pautado pela emoção. Ou ao menos foi o que deu a entender a líder da trupe, a atriz francesa Isabelle Huppert. Conhecida pela falta de paciência para lidar com a imprensa, ela se mostrou bem tranqüila na apresentação aos repórteres. Nas palavras dela, acertadas como sempre: “Não acredito que o ato de escolher um melhor filme seja um ato somente racional, que tem que ser baseado em fatores apenas de qualidade do próprio filme. Temos que ouvir a alma, julgar com elas”. A rodada de entrevistas foi bastante coesa entre os membros do júri, mas a oportunidade para uma boa polêmica não foi perdida pelos repórteres, que no último instante alvejaram Huppert e seus colegas sobre a idéia de que julgar também seria um ato de diplomacia, algo escrito na biografia do presidente do festival. Huppert respondeu com a classe que se esperava: “Acho que não é uma palavra atraente quando se trata de festivais, não estamos tratando do mundo dos negócios. Prefiro expressões como conflito de opiniões e palavras como reações ou contrastes”. Huppert é a primeira mulher a presidir o júri desde que a atriz e escritora sueca Liv Ullman ocupou o cargo em 2001. O grande destaque da apresentação foi a presença da atriz Asia Argento, esbanjando charme e em estado de graça, brincando com repórteres e se tornando o foco de todos os flashes.
Pode parecer piegas ou conversa de estúdio que quer sair bem na foto com os moralistas, mas a verdade é que a grande receita da Pixar pode ser resumida em uma palavra: alma. Assim eles chegaram ao domínio da categoria de animação do Oscar, assim eles conquistaram a confiança total da Disney, assim eles chegaram ao marco histórico de primeira animação a abrir o festival de Cannes. E o fato de Up soar como um início muito leve para o festival que já teve filmes de arte como exclusividade em seu cardápio apenas prova a força e a eficiência dessa receita. A nova obra do estúdio de animação mais brilhante do mundo é a história singela de um ancião que vê seu sonho realizado ao sair em uma viagem aérea cheia de perigos. Ele percebe, é claro, que um acompanhante indesejável embarcou ao seu lado, e aos poucos a amizade entre os dois vai se fortalecendo. Enfim, uma história não muito diferente da de sempre. Mas a Pixar consegue fazer soar original. O foto aí em cima, do elenco com o diretor Pete Docter (o grandão no meio) e o produtor John Lasseter (ao lado dele), mostra bem o espírito que abriu Cannes 2009. As palavras de Docter sobre Up, depois da sessão ter deixado todos os espectadores com um sorriso no rosto? “O filme tem um pouco de todos nós no filme. Histórias pessoais, sonhos e nossa fantasia de crianças. Acreditamos que seja uma história da infância de todo mundo”. Assim começou Cannes: animado, orgulhosamente alegre, uma viagem ao mundo dos sonhos e um tour de force pela Pixar e toda a sua criatividade. De esquentar a alma.
No páreo do dia estava também Spring Fever, drama chinês que compete na amostra Um Certo Olhar, notável reveladora de talentos futuros para a arte cinematográfica. O filme de Lou Ye (Palácio de Verão), porém, não chegou a empolgar a platéia e foi recebido com um frio silêncio após a seção. O filme foi realizado em 2006, mas apenas agora chegou a ser exibido, uma vez que a rígida censura cinema vetou a estréia da obra no país. Trata-se, de certa forma, de uma versão asiática para Brokeback Mountain, uma história de amor gay que começa com o relacionamento de dois rapazes e acaba evoluindo para uma complexa rede de ciúmes, violência e mistério baseada em um triângulo amoroso de conseqüências catastróficas. A reação dos jornalistas foi quase unanime: o filme se perde em meio ao tempo e só consegue se recuperar no final, mas ainda assim não atinge o impacto que pretendia. Em suma, nada para se apostar em meio a seleção bem promissora da exibição paralela. A polêmica em torno do banimento do filme na China, porém, não passou em branco, e o diretor Lou Ye não perdeu tempo para soltar seu protesto: “Gostaria de trabalhar de forma livre e desejo o mesmo a meus colegas. Quanto a polêmica, já esperava esse tipo de reação”. As exibições do Um Certo Olhar guardam o único longa-metragem brasileiro com possibilidades de sair com um troféu, À Deriva, de Heitor Dhalia (O Cheio do Ralo). O júri da seleção paralela conta com o diretor Paolo Sorrentino (O Amigo da Família), o crítico Piers Handling, e a atriz Julie Gayet (Shall We Kiss?).
Segundo dia: Quinta-Feira, 14 de Maio de 2009
Às vezes se tem sorte, às vezes não. Até a última quinta-feira, quando Fish Tank se tornou o segundo filme da mostra Um Certo Olhar a ser recebido com frieza pela platéia de Cannes 2009, a diretora britânica Andrea Arnold só conhecia um lado desse dilema. Revelada em 2003 quando o curta-metragem Wasp saiu vitorioso em sua categoria no prêmio da Academia. Desde então, Arnold entrou no seleto rol de prefiridas dos apreciadores mais conceituados de cinema. A estrada a levou até Cannes pela primeira vez em 2006, quando seu longa-metragem de estréia, Red Road, levou o grande prêmio do júri. Fish Tank também foca sua câmera na juventude problemática e cheia de fantasmas. A trama aqui é sobre Mia, uma adolescente de quinze anos que não consegue viver em sociedade, se tornando violenta e descontrolada quando posta em convívio com alguém além de sua mãe. Não é difícil imaginar como a vida de Mia muda quando a mãe arranja um namorado novo. Na pouco movimentada coletiva de imprensa realizada logo após a sessão, Andrea discutiu sobre seu processo criativo e sobre a inspiração para a trilha-sonora, recheada de hip hop. Segundo ela: “É como aparece uma história para mim, primeiro uma imagem, e depois dou a ela um tratamento documental. No caso de Mia, é na música e na dança que ela se encontra protegida, no seu lugar correto”. Apesar da recepção fria ao filme em geral, sobraram elogios a estreante Katie Jarvis, que não compareceu ao festival graças a uma gravidez, mas surgiu como a primeira provável concorrente ao prêmio de melhor atriz.
Essa decididamente merece um vídeo. Afinal, por mais que seja uma festa que premia o cinema autorial e o talento de verdade, Cannes é também um espetáculo de glamour e circunstância. Além, é claro, de uma excelente estratégia de marketing. No ano passado, quem sacudiu a cidade francesa foi o astro de TV Jerry Seinfeld, que se vestiu de abelha e voou sobre o Hotel Carlton, onde o evento é sediado todos os anos, preso por um cabo. Tudo para divulgar a animação Bee Movie, que nem ao menos seria exibida na quinzena. Esse ano, a coisa se repetiu de forma um pouco mais ambiciosa e menos ridícula. Afinal, estamos falando aqui de toda a esperteza de Michael Bay (Pearl Harbor), um dos mais brilhantes publicitários que Hollywood já teve em suas fileiras. A expectativa que ele vem criando em torno da continuação Tranformers: Revenge of The Fallen, apenas aumentou com a instalação de um boneco em tamanho natural de Bumblebee em frente ao hotel, a vista de toda a cidade. Para quem não está familiarizado com os nomes do robôs, Bumblebee é o Camaro do protagonistas Sam (Shia LaBeouf), o primeiro transformer a se revelar no filme original. Com a profusão de novos robôs anunciados para a continuação, o temor dos fãs de que a relação entre Sam e Bumblebee fosse abandonada ficaram para trás com a instalação do próprio em frente ao tapete vermelho do maior evento de cinema do mundo. Pompa a quem merece.
Cannes também é feito de surpresas, e era claro depois de duas recepções frias a filmes que prometiam ao menos um pouco mais de discussões que o festival precisava urgente de algumas delas. Pois a salvação veio, em par, e direto do Oriente. No meio da tarde e fora da competição, Air Doll ainda assim lotou a sala de exibição com capacidade para mais de três mil pessoas. O filme em questão faz parte de forma tímida da seleção de diretores consagrados que Cannes fez para sua edição 2009. No caso, se trata do japonês Hirokazu Koreeda, conhecido por aqui pelo pesado drama sobre pedofilia Ninguém Pode Saber, que chega a sua terceira participação em Cannes com o novo filme. Air Doll é uma surpreendente pérola de sensibilidade e maestria ao contar a história de uma boneca inflável que desenvolve uma alma e se apaixona por um balconista de locadora. Uma espécie de Pinóquio para adultos que esconde por baixo da criativa premissa uma série de lições de vida, como disse o próprio diretor. Os críticos se dividiram entre os que compreenderam o registro fantástico de um diretor que normalmente se mostra realista e melancólico e os que acharam a coisa toda esdrúxula demais. Quem também dividiu opiniões foi Thirst, primeiro filme da competição principal a ser exibido. A trama é, basicamente, a de um padre que participa de um experimento científico fracassado e se torna um vampiro, mas o que mais desperta curiosidade é a forma como o cineasta coreano Chan-Wook Park, vencedor do grande prêmio do júri com seu Oldboy, navegaria dentro desse universo de terror mais radicalizado do que psicológico. Pela reação dos jornalistas, a saída foi apostar no requinte de detalhes e na subversão, criando um universo exagerado e extravagente que agradaou a alguns e pareceu equivocado a outros. Ninguém melhor que o próprio Park para esclarecer a coisa toda: “Não era o cristianismo que me interessava ao pensar em um padre como protagonista, e sim os dilemas que tem quem escolhe esse ofício. Fiz o filme para provocar os cinco sentidos da platéia; é um filme para ver, escutar, cheirar, sentir o gosto se possível e até que pudesse ser tocado”. Foi com olhos puxados que Cannes 2009 começou, de fato, a esquentar.
Terceiro dia: Sexa-Feira, 15 de Maio de 2009
O cinema independente mudou. Filmes feitos sem apoio de grandes estúdios, de uma hora para a outra, se transformaram em uma mina de ouro para as produtoras iniciantes e começaram a atrair astros à procura de um pouco mais de profundidade. Afinal, ao menos disso o cinema indie americano não abriu mão: roteiro em primeiro lugar. Push, o representante desse novo conceito de filme independente em Cannes 2009, passou pelo tapete vermelho com pompa e circunstância inesperadas. Mas primeiro saibamos do filme. Um estouro na última edicão de Sundance, onde levou dois dos troféus principais, o filme mudou o nome para Precious visando evitar a confusão com o filme de aventura super-heróica estrelado por Dakota Fanning (Guerra dos Mundos). Afinal, são duas espécies cinematográficas completamente diferentes. Precious é baseado na obra literária mais “infilmável” de todos os tempos, lançada em 1996 e recebida como uma golfada de ar fresco e honestidade pelos críticos da área. A trama, do filme e do livro, acompanha a adolescente Clareece “Precious” Jones a partir do momento em que entra para uma escola de alfabetização adulta, esperando que sua vida mude de rumo. Na infância, ela foi molestada pelo pai, sofreu do descaso da mãe e se tornou uma figura mal-vista pela sociedade, seja por sua cor, por seu peso ou por sua forma inconstante de ver o mundo. Dirigido por Lee Daniels (Assassinos de Aluguel), Precious acendeu uma chama de esperança para a mostra Um Certo Olhar, que corre paralela a competição principal. As sessões iniciais da mostra foram recebidas com frieza, mas o filme estrelado pela estreante Gabby Sidibe recebeu um sonoro aplauso de vários minutos após a exibição. Para a atriz sobraram elogios, mas o foco das câmeras se voltou para o que ela mesma chama de “seus ídolos”: a cantora Mariah Carey e o músico Lenny Kravitz, que parecem ter finalmente acertado suas escolhas no cinema ao atuar como coadjuvantes da produção, que saiu do festival com distribuição garantida em pelo menos onze países, incluindo os EUA.
Se havia uma discussão inevitável entre as várias que esquentaram Cannes 2009, essa discussão era sobre a participação da mulher como criadora de obras cinematográficas. O espaço das cineastas tem sido bastante respeitado nesse novo século em que a evolução chega até a historicamente atrasada Hollywood. Mas, em 1993, quando O Piano revelou para o mundo da diretora neo-zelandesa Jane Campion, as coisas eram diferentes. Prova disso é o simples fato de que Campion foi a primeira mulher a ser indicada para o Oscar isso quando a festa esquentava os motores para completar 60 anos de vida. A estatueta ela não levou, mas a Palma de Ouro está na estante. Uma década e meia depois, ela retorna a cidade francesa com Bright Star, a história de amor real entre o poeta John Keats e a sua paixonite de infância Fanny Brawne. O filme, que estreou como o segundo da competição principal a ser exibido, foi recebido com aplausos diplomáticos pelos jornalistas presentes na sessão, mas cumpriu seu papel ao ascender de uma vez por todas a discussão aí no começo do texto. Segundo a diretora Campion: “Mulheres não têm muito espaço para se expressar e ficam esperando que alguém faça isso por elas; só que somos metade do planeta e espero que cada vez mais tenhamos diretoras com essa ambição de se fazer ouvir”. Em um júri presisido por uma mulher e com outras quatro representantes femininas, a declaração deve ter batido forte, o que colocou Bright Star como primeiro concorrente plausível ao prêmio principal, mesmo que siga um caminho diferente do esperado, focando mais nas cartas que Keats mandava a amada e menos em sua pouco conhecida obra poética. O motivo foi esclarecido por Campion: “Keats era alguém de muita autoconfiança, sabia que estava no caminho certo. Apesar disso, seu nome e sua poesia são ignorados por muitas gerações”. O filme é estrelado por Ben Whishaw (Perfume), que faz par a uma radiante Abbie Cornish (Candy).
Apesar de toda a aura de grande mestre do cinema atual, Martin Scorsese nunca foi exatamente um dos grandes preferidos de Cannes. Talvez seu cinema seja “americano demais” para um festival em uma cidade francesa, mas ao menos Cannes demorou bem menos que a Academia para reconhecer o talento incomparável de Scorsese. Ele levou a Palma de Ouro para casa já em 1976, quando era um diretor de segunda viagem no clássico Taxi Driver, e foi indicado mais duas vezes, vencendo na categoria de melhor diretor em 1985, pelo pouco conhecido Depois de Horas. Desde então, Scorsese tem passado em branco por Cannes. E também não retornou esse ano, uma vez que seu Paciente 67 continua incompleto, mas ao menos marcou presença no tapete vermelho para conferir a reestréia de seu filme preferido, o musical Sapatinhos Vermelhos, de 1948, em cópia restaurada. A bem da verdade, há um pouco mais do que isso na presença de Scorsese na cidade francesa. Ele, além de ajudar nos fundos para recuperação de filmes clássicos, foi colocado no posto de guia do projeto Cannes Classics, que visa recuperar grandes obras e realizações incompletas do passado. E ele, como sempre conceituado e simpático com os jornalistas, deu um show de conhecimento sobre o assunto, se recusando a falar de seu próximos projetos e do aparelho de marketing por trás de seu novo filme. Como representante do World Cinema Foudation em Cannes, Scorsese ainda contribuiu para o projeto com filmes do naipe de Inferno, realização lendária de Henri-Georges Couzot (O Mistério de Picasso) cujos originais, perdidos desde a época das filmagens foram recuperados pela equipe do diretor. Segundo ele: “Estes filmes tiveram grande influência sobre nós, em nossa maneira de narrar e de filmar. Por isso, é importante recuperá-los em bom estado, eles nos ajudam a perceber quem nós somos. Quanto mais platéias virem esses filmes, mais elas vão querer ver outros filmes assim, e aí o que acontece é que a platéia muda, o que significa que os filmes que estão sendo feitos mudam”.
Quarto dia: Sábado, 16 de Maio de 2009
Nem é preciso falar muito sobre Woodstock. A própria menção do nome do maior festival hippie da história, ocorrido em agosto de 1969, desperta imagens bem definidas e sensações bem distintas entre os que entendem um pouco de música ou da década de sessenta. Afinal, Woodstock é uma daquelas ocasiões (ou histórias) impossíveis de esquecer. É quase como se todo aquele clima tirualístico se gravasse em nosso inocnsciente e de lá fosse impossível tirá-lo. Talvez por isso seja algo tão polêmico o lançamento de Taking Woodstock, primeiro filme de ficção que ousa reconstituir aqueles três dias em 1969, ou talvez seja pelo fato de que o diretor escolhido para tal missão não é americano. O que a maioria dos críticos por antecipação do filme se esquecem, porém, é que Ang Lee não é qualquer cineasta. Na ativa desde 1992 e já com cinco obras americanas no currículo, o taiwanês pode até errar a mão de vez em quando, mas é inegável que sua desenvoltura para passear entre gêneros não encontra páreo entre os cineastas de hoje. Mas, ainda assim, porque Woodstock? Talvez seja melhor emprestar as palavras do próprio, ganhador do Oscar de melhor diretor por outra obra polêmica, O Segredo de Brokeback Mountain. Segundo ele: “Para mim, Woodstock significa um período em que ainda era possível ser feliz, e o filme é, antes de tudo, sobre a felicidade. Foi um último momento de inocência, em que jovens foram contra as convenções sociais, se sentiram livres para fazerem o que quisessem e foram se integrar a natureza. É claro, a música foi importante na minha adolescência, mas só me interessei em fazer o filme por surgiu um ponto de vista novo, mais pessoal, de um drama de quem estava lá e viu tudo acontecer de dentro”. Depois de tais palavras, resta dizer que o filme foi muito elogiado pelo roteiro, que foca em histórias paralelas e não se perde em meio a narrativa cheia de personagens que vão do grotesco ao emocionante em pouco tempo. O elenco é outro ponto forte desse “filme pequeno sobre um momento grandioso”, incluindo Emile Hirsch (Na Natureza Selvagem), Liev Schreiber (Na Companhia do Medo) e Jeffrey Dean Morgan (Watchmen).
Monica Bellucci e Sophie Marceau são a mesma pessoa. Ou pelo menos a partir de certo ponto de Ne te Retourne Pas, estréia em longas-metragens da diretora francesa Marina de Van, mais conhecida fora de seu país como a roteirista de 8 Mulheres, filme de François Ozon (Swimming Pool). Ambas, que contracenam pela primeira vez, interpretam Jeanne, uma escritora e dona-de-casa que começa a perceber mudanças em seu corpo e não encontra reconhecimento da anomalia na família. Desesperada e sob pressão para terminar sua última obra, Jeanne parte para a Itália buscando se reconciliar com o passado na busca por uma mulher que figurava em uma foto antiga de sua falecida mãe. Ao chegar lá, Jeanne se torna uma pessoa diferente física e emocionalmente, que prefere ser chamada de RosaMaria e vai descobrir o estranho segredo de sua verdadeira identidade. É a complexidade planejada do cinema francês posta em prática em terras estrangeiras e sob a atuação de duas beldades que, veja só, são também boas atrizes. Monica, que surgiu ao mundo em 2000 ao interpretar uma ex-atriz pornô no seminal Malena do diretor Giuseppe Tornatore (O Homem das Estrelas), é apaixonada confessa pelo cinema francês, no qual trabalha desde o início da carreira, em 1996, com o célebre O Apartamento. Fluente na língua oficial do festival, ela e sua parceira de cena, conhecida por aqui como a bondgirl de Pierce Brosnan em O Mundo Não é o Bastante, conversaram após a sessão do filme sobre como esse tipo de troca de personalidade é o sonho de infância de qualquer um. Sophie, sempre simpática, disse: “Também tive essa vontade um dia e ainda bem que me tornei atriz, assim posso fazer isso sempre". As duas foram responsáveis pela primeira grande aglomeração de fotógrafos de Cannes 2009 no tapete vermelho que levava a sessão de estréia do filme, que é exibido fora de competição. Ainda assim, a dupla de estrelas foi ovacionada ao fim da projeção e a coletiva de imprensa foi a mais concorrida da edição.
Apesar de Ang Lee ter sido bem recebido com seu tipicamente americano Taking Woodstock, sábado foi o dia do cinema francês em Cannes. Nada mais justo para um festival localizado em uma pequena e adorável cidade litorânea do país, que além de ver duas de suas estrelas brilhando acima de todas as outras também sentiu o gosto doce de apresentar o melhor filme do festival até então. Un Prophète foi o quarto e mais arrasador concorrente a Palma de Ouro a passar pelo tapete vermelho do festival. A presença sempre carismática do diretor Jacques Audiard (Um Herói Muito Discreto) não foi capaz de amenizar o impacto de violência e opressão de sua última obra, a pesada história de um jovem árabe que é jogado em uma prisão francesa e, de uma hora para a outra, se torna peça chave de todas as grandes ações do crime organizado. Como era de se esperar do sempre poético Audiard, responsável também pelo metafórico De Tanto Bater Meu Coração Parou, não se trata de uma crítica ao penoso sistema carcerário francês, mas um pujante paralelo para a prisão em que cada um de nós vivemos, e também um tratado sobre um novo tipo de criminoso. Não o marginal sujo a que estamos acostumados, mas um profeta como o anunciado pelo título. Na disputada coletiva de imprensa realizada após os vários minutos de aplauso entusiasmado dos jornalistas, Audiard foi alvejado por elogios explícitos e perguntas admiradas. Entre elas, o diretor explicou como se interessou pelo filme: “Eu li o roteiro e me interessei na mesma hora. Para mim, essa prisão é uma metáfora do que está fora dela, toda a sociedade em geral. Reconheço que, no roteiro, há certa ambigüidade quanto ao sentimento de culpa. É um filme que se movimenta em vários gêneros e que dá atenção aos personagens. Pareceria mais um western. Há algo nele de O Homem Que Matou o Fascínora”. Outro elogiado foi o ator estreante Tahar Rahim, que interpreta o protagonista, mas o filme já estreou com poucas chances de levar a Palma de Ouro, uma vez que o vencedor do ano passado, Entre os Muros, além de francês, se localizava também em um espaço concentrado. Cannes não gosta de se repetir.
Brillante Mendoza não é um novato em Cannes. O cineasta filipino, pouco conhecido fora do circuito de arte europeu, pisou pela primeira vez no tapete vermelho da cidade francesa no ano passado, trazendo seu Serbis para a competição principal. O drama pesado e sem concessões sobre a saga cheia de polêmicas de uma família dona de um cinema pornô decadente, como esperado, dividiu as reações entre encantamento e pura revolta. Como não há nada melhor do que uma boa polêmica para esquentar a divergência de opiniões natural de um festival tão abrangente como Cannes, Brillante está de volta em Cannes 2009 com o igualmente polêmico Kinatay. A trama da vez envolve o chocante seqüestro de uma prostituta por parte de uma gangue liderada por um policial corrupto. O fim trágico da história se anuncia a partir do envolvimento de um jovem aprendiz da academia policial que está em busca de dinheiro para bancar o sustento de sua mulher e filho, que toma conhecimento do seqüestro a partir de um amigo, membro da gangue. Curiosamente, ao final da projeção do filme, o quinto a ser exibido na competição principal, o público se dividiu entre vaias e aplausos, sob as mesmíssimas justificativas. Afinal, é impossível negar que o cinema e sem concessões de Mendoza é difícil de engolir, indigesto em alguns momentos e exagerado em outros tantos, mas corajoso acima de tudo. Ele faz filmes para contar uma história, sem se importar com as conseqüências ou a visão do espectador. Mendoza, acostumado com as reações divididas, disse: “Esses raptos são constantes nas Filipinas e as pessoas se acostumam a ler sobre essas mortes, sem mais dar conta de seu horror. Eu tentei, com o filme, mostrar a brutalidade da forma mais crua possível e assim tirar a banalidade desses atos que os jornais trazem com tanta freqüência”. Motivo nobre que rendeu alogios tímidos a sua câmera, ao menos.
Quinto dia: Domingo, 17 de Maio de 2009
Pouco conhecido no Brasil, o diretor Johnnie To, além de ser um dos cineastas mais profícuos de seu tempo com um currículo de mais de cinqüenta obras, é também um dos mais versáteis. Talvez seu filme mais conhecido por aqui, Eleição – O Submundo do Poder é um suspense tenso e cheio de intrigas políticas que conquista por mostrar criminosos da temida máfia chinesa como seres humanos de verdade, envolvendo o espectador em seus dramas pessoais ao mesmo tempo em que acompanha o dia-a-dia de violência e barbárie de cada um deles. Vengeance, segunda figuração de To em Cannes, é quase uma antítese a tudo isso. Violento, dinâmico, cheio de estilo e com ação sem parada, o filme narra a jornada de Frank Yuma, um aliado de longa data a uma organização criminosa que sobrevive a uma emboscada organizada contra ele por seu próprio pessoal e sai em busca de uma sangrenta e brutal vingança. Ou seja, tema da metade da filmografia dos “grandes astros” de ação dos anos 1980. E poderia ser banal, insignificante, se não tivesse um mago da câmera comandando o espetáculo. E não sou eu quem estou dizendo. Se utilizando muito do humor presente nas poucas falas do roteiro, To foi elogiado pela coragem de ralizar entretenimento puro e simples, sem muitas pretensões além da divertir a platéia. Sobre o elemento cômico em sua obra, To disse: “Acredito que esse ingrediente de humor se comunica com a platéia tanto como a ação, que usada a exaustão pode afastar a atenção do espectador do que é importante, a história”. A coletiva de imprensa agitada, porém, se concentrou no astro da música francesa Johnny Halliday, conhecido fora da Europa por pequenos papéis em filmes como A Pantera Cor-de-Rosa 2. O ator também não poupou palavras ao seu diretor: “Eu me sentia muito perdido ali, num país desconhecido de língua difícil, então tinha que escrever minhas próprias indicações. Ajudava o fato de Johnnie ter uma postura muito física ao dar instruções para os atores, porque isso tem muito a ver com o filme, em que quase não se fala e sim é baseado na ação”. Vengeance não se tornou candidato sério a Palma de Ouro, mas deixou os espectadores com belas duas horas de diversão.
Em 2000, Dançando no Escuro foi um furacão que passou por Cannes. Segundo filme produzido com dinheiro americano do dinamarquês Lars Von Trier, futuro diretor do polêmico Dogville, o filme acompanhava a destruição do sonho americano ao vivo e a cores, sem poupar na crueldade ao mostrar a jornada de uma jovem européia que vinha para a América com o filho e descobria que os filmes de Hollywood não eram um retrato fiel da verdade. Um drama pesado, sim, mas também um musical de quebrar o coração estrelado por uma Bjork não menos que extraordinária, vencedora do prêmio de melhor atriz no festival. Não por acaso, Dançando no Escuro saiu também com a Palma de Ouro. Nove anos, muita polêmica e notoriedade depois, Trier retornou a Cannes com o ego inflado para apresentar Anticristo, sua primeira incursão no meio do terror explícito, um filme que prometia emoções fortes, atuações intensas e cenas de pura genialidade visual e psicológica. Em suma, a previsão era de outro furacão. Pois é, parece que a metereologia francesa errou feio dessa vez. Em uma tentativa patética de se superar e trazer impacto ao espectador, Trier tropeçou na própria ambição e na falta de um elemento mais solidamente humano no roteiro. O script de sua própria autoria foi criticado pela psicologia barata incutida na trama sobre um casal americano em crise que resolve ir para uma cabana isolada da sociedade e é assaltado por estranhos acontecimentos e delírios. A dupla protagonista, ao menos, saiu ilesa. Willem Dafoe e especialmente Charlotte Gainsbourg (Não Estou Lá) sairam até com alguns elogios, mas a explosiva coletiva de imprensa do diretor acabou como uma demonstração pública de prepotência. Evitando perguntas sobre o filme depois da sonora vaia recebida, Trier soltou o verbo apenas no final da coletiva: “Eu não me preocupo com a audiência quando faço um filme. Foi a mão de Deus que me fez escolher esse história e realizar esse filme agora. Não tenho que explicar nada, fiz o filme porque sou o melhor diretor do mundo. Sei que muitos diretores pensam o mesmo de si, não estou certo de que seja o melhor, apenas sinto isso”. A declração repercutiu na imprensa, é claro. Melhor baixar a bola da próxima vez, Lars.
Toda festa do cinema tem seu Martin Scorsese. Que me perdoem os fãs do diretor de clássicos como Taxi Driver e Os Bons Companheiros, mas a expressão aí em cima se refere mesmo aos anos a fio que a Academia demorou para conceder a estatueta dourada mais famosa do mundo ao cineasta, injustiça que só foi corrigida recentemente com o prêmio tardio por Os Infiltrados. Quem vivia o mesmo dilema em Cannes era Ken Loach, cineasta irlandês conhecido por aqui mais por seus recentes trabalhos políticos como Pão e Rosas ou Ventos da Liberdade. Esse último, aliás, foi o responsável por finalmente dar às mãos do diretor a Palma de Ouro, após sete outras indicações e até um troféu pelo “conjutno da obra” em 2004. Três anos depois, Loach retorna a Cannes com aura de participante especial em seu Looking for Eric, que de certa forma foge bastante do que o diretor tem feito ultimamente. Fora das causas e lembranças de sua Irlanda maltratada de outros tempos, Loach abre os olhos para a modernidade e para a paixão pelos esportes em sua nova obra. A comédia dramática é a história de um carteiro fanático por futebol que vem atravessando problemas em um casamento de longa data e se vê aceitando conselhos do próprio ídolo, o ex-jogador de futebol Eric Cantona. Em sua própria pele, o ex-craque do Manchester United engata de uma vez por todas a carreira cinematográfica que vem ensaiando desde 1995. O currículo do jogador inclui participações em filmes como Elizabeth, e ele se diz tão apaixonado pela sétima arte quanto ainda é pelo esporte que praticava. Nas palavras dele, o mais assediado nas entrevistas coletivas após a aplaudida sessão de Looking for Eric: “Assim como me iniciei aos poucos no futebol com o apoio dos tocedores, também vai depender do público minha carreira de ator. Se assim quiserem, continuarei a atuar”. Cantona foi elogiado timidamente por alguns dos jornalistas, mas Loach não passou em branco e foi alvejado de perguntas sobre o risco de se fazer um filme de futebol para os fãs do esporte. A resposta foi afiada: “O ritmo do futebol é completamente diferente do ritmo do cinema. Nem pior nem melhor, apenas diferente. Jamais tentaria fazer um filme dessa forma, pois recriar um jogo em sua concepção real é impossível”.
O melhor (e o maior) sempre fica para o final. Cannes não quis contrariar a regra e deixou a premiere de Agora para o final da noite, onde os flashes estelares brilhariam mais no tapete vermelho. Em uma das maiores mobilizações de fotógrafos dessa edição do festival, Rachel Weisz chegou exuberante e inspirada para a primeira sessão do filme em que atua sob o comando de Alejandro Amenábar (Os Outros). Simpática, a estrela que ganhou o Oscar de melhor atriz coadjuvante em 2005 por O Jardineiro Fiel posou para todas as fotos e permaneceu no tapete vermelho até o último momento antes das luzes se apagarem na sala de exibição. Curiosamente, Agora, o filme mais grandioso da carreira do diretor espanhol, foi feito sem dinheiro americano, com cachê reduzido para os atores que participaram e um orçamento substancial de 73 milhões de dólares. Tudo isso para contar da forma que Amenábar queria a história da matemática, cientista e filósofa Hypatia, considerada pelos historiadores como a primeira notável mulher a desafiar a organização rígida da sociedade, isso em pleno Egito dominado pelos romanos, quando direito das mulheres e feminismo não eram nem mesmo fantasmas. A bem da verdade, a protagonista não é Weisz, que interpreta Hypatia, mas sim o ator inglês Max Minghella, conhecido por aqui por pequenas participações em Syriana e Um Louco Apaixonado. Ele atua na pele de Davus, um jovem escravo que vê no nascimento do cristianismo a oportunidade de perseguir a liberdade, ao mesmo tempo que se apaixona por sua “proprietária”, justamente a filósofa de Weisz. O filme ainda conta com Rupert Evans, o agente humano babá de Hellboy no primeiro filme da série, atuando como o bispo católico Synesius, que inicia Davus nos costumes esperados dos cristãos. O choque de culturas se torna forte sob a câmera de Amenábar, ou ao menos foi o que disseram os jornalistas que compareceram a entrevista coletiva, onde o diretor esclareceu o processo de pesquisa para o filme: “Fomos percebendo que nesta época específica da humanidade há vários paralelos com os dias de hoje. Assim o projeto foi ficando cada vez mais intrigante, porque notamos que poderíamos fazer um filme sobre o passado lidando com assuntos muito presentes nos tempos atuais”. Agora foi exibido fora de competição.
Sexto dia: Segunda-feira, 18 de Maio de 2009
Tiranos também se apaixonam. Vincere é o retorno de uma das grandes figuras da história recente de Cannes ao festival, sete anos depois de ter saído com o prêmio ecumênico do júri por A Hora da Religião. Marco Bellocchio pode não ser o cineasta italiano com maior presença em terras brasileiras, mas suas obras políticas nas décadas de 1960 e 1970 e a regularidade de sua produção até hoje sem dúvida o colocam no posto de um dos mais notáveis deles. Sempre discutindo assuntos polêmicos e reconstituindo épocas atribuladas, Bellocchio carrega no dramatismo em Vincere. O filme, feito originalmente para exibição televisiva, foca na personagem real Ida Dalser, uma jovem italiana na época da ascenção do fascismo que conhece Benito Mussolini como um jovem socialista e idealista, se apaixona por ele e dá luz a um filho. Com a ascenção do amado ao poder, porém, Ida é jogada para escanteio, abandonada a própria sorte e internada em um hospício. Contar que Ida lutou pelo reconhecimento da paternidade até sua morte, em 1937, não seria estragar a dramaticidade de uma obra que encontra forças, mais do que em seu diretor consagrado ou em seu roteiro conciso, nas interpretações de uma dupla de atores que encarna seus papéis com garra. Tanto é assim que, mesmo com a recepção fria ao filme, Giovanna Mezzogiorno (Amor nos Tempos de Cólera) surgiu logo como uma das favoritas ao prêmio de atuação feminina do festival, enquanto o pouco conhecido Filippo Timi (Em Minha Memória) foi bastante elogiado por sua composição do ditador italiano dos tempos da Segunda Grande Guerra. Outro ponto bastante citado pelos jornalistas presentes na sessão foi a edição ágil e o ritmo acelerado em que a história é levada, intercalando imagens de ficção com poderosas cenas de arquivo que se encarregam do contexto histórico inerente a trama. O tom melodramático impressio por Bellochio, porém, garantiu opiniões antagônicas.
Sétimo dia: Terça-Feira, 19 de Maio de 2009
Não é fácil falar sobre Pedro Almodóvar. Primeiro, porque há muita coisa a dizer em se tratando de um cineasta que completa esse ano seis décadas de vida, quase quatro destas dedicadas a arte de fazer cinema. Segundo, porque sua obra é tão cheia de sutilezas a essa altura do campeonato que se tornou impossível definir sua forma de contar histórias em uma palavra. Terceiro, e talvez mais importante, porque o que Almodóvar faz é cinema para a alma, e não para as palavras definirem. Los Abrazos Rotos é o primeiro longa do diretor espanhol a ser selecionado para a competição oficial de Cannes após Volver ter ganho o prêmio de melhor roteiro em 2006. E é uma obra completamente diferente daquela que rendeu a Penélope Cruz a primeira indicação ao Oscar. Volver era sobre mágoa, tinha elementos sobrenaturais, cenas de puro suspense e conflitos familiares intensos. Los Abrazos Rotos segue uma linha mais metalinguística, cheia de inserções pessoais do diretor e se apoia muito mais nas atuações do que no ritmo insinuante de um roteiro digno do nome e do prestígio de Almodóvar. Elegante, instigante e emocional acima de tudo, a nova obra promoveu um banho de alma para os jornalistas presentes a sessão da estréia, logo na manhã do sétimo dia em Cannes. A obra surpreendeu e envolveu quem se arriscou, contando a personalíssima história de um diretor em crise de identidade e cego, que tenta dar forma a sua nova obra ao mesmo tempo que acerta as contas com o passado e com a mulher, mais nova que ele. O papel de protagonista ficou com Lluís Homar (Poder e Luxúria), que ao lado de uma inspirada Penélope Cruz (Vicky Cristina Barcelona), dá corpo e alma a um filme delicioso. Quem também estava em estado de graça era Almodóvar, que deu um show de simpatia, inteligência e receptividade nas estrevistas após a exibição. Questionado sobre a força das mulheres em suas obras e sobre a aproximação de temas entre Los Abrazos Rotos e seu seminal Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos, Almodóvar replicou: “Essa força feminina acho que se explica pelo fato de eu ter crescido rodeado por mulheres em casa, na rua, no povoado onde morava, pois os homens estavam na guerra. Mau eu preferia que isso fosse explicado por um psicanalista, se houver algum na platéia. Fui acompanhado por fantasmas, bons e gratos fantasmas de Mulheres, durante todo o processo de produção e realização desse novo filme. Utilizei até o mesmo estúdio daquela época, acho que por isso há tantas semelhanças entre os dois trabalhos”. Não foram poucos os que indicaram Los Abrazos Rotos como um grande candidato a Palma de Ouro.
Ela não perde uma. Já que Cannes não é sinônimo apenas de bom cinema, Paris Hilton abrilhantou um pouco mais o pavilhão de estrelas dos paparazzi e chegou a cidade francesa com a desculpa de prestigiar o documentário Paris not France, obra da estreante Adria Petty, que acompanhou a socialite durante a turnê do primeiro álbum de sua carreira musical, lançado em 2006. O material reunido pela diretora permaneceu em circuito fechado graças a falta de apoio da própria Paris, que inclusive se recusou a comparecer a primeira exibição da obra, no Festival de Toronto. Três anos depois, mais segura de si e com menos receio das imagens supostamente expositivas da obra, Paris compareceu a uma sessão de fotos para promover o filme ao lado do namorado Doug Reinhardt. Perguntada sobre a mudança de atitude em relação ao assunto, Paris respondeu: “Eu segurei por três anos, pois não me sentia bem com o que é mostrado. Agora estou pronta. Antes, as pessoas poderiam dizer que não trabalho, não faço nada. Mas agora sei que é mentira”. Opiniões e cinema a parte, Paris não se limitou a prestigiar o documentário, é claro, durante sua estadia em Cannes. Não demorou para que a herdeira ganhasse as manchetes dos tablóides ao perder o celular na cidade francesa, aparelho que supostamente conteria toda sua lista de contatos (famosos ou não) e até imagens comprometedoras. Poucos dias depois, parecendo bem menos preocupada, Paris foi vista causando escândalo em um clube noturno ao trocar carinhos íntimos com o namorado durante uma dança, que teria sido filmada pela própria, que tinha uma câmera na mão. Depois, Paris ainda ganhou destaque pelo ousado maiô que vestiu para relaxar em uma piscina do hotel em que estava hospedada. Por breves momentos, ela fez os jornalistas esquecerem que estavam em festival de cinema. Afinal, não é todo dia que Paris vai parar… em Cannes.
Oitavo dia: Quarta-Feira, 20 de Maio de 2009
Quando dirigiu seu primeiro curta-metragem, Alain Resnais era um jovem de 14 anos vivendo na Europa no tenso período entre guerras. Documentarista por natureza e sem recursos em uma França devastada pelo nazismo, o futuro grande mestre seguiu com pouco notadas obras de curta duração sobre grandes pintores e artistas de sua época. Isso até 1959, é claro, quando Hiroshima Meu Amor chegou a Cannes (e ao Oscar) concorrendo pela Palma de Ouro e elevando Resnais do status de desconhecido a artista da imagem. A partir daí, seguiu-se uma verdadeira aula de como ultrapassar as décadas sem soar analógico ou se apoiar no paradigma de “clássico”. Os anos 1960 foram marcados por seu Muriel, os 1970 viram o nascimento da farsa dramática com seu Stavisky, e Resnais seguiu com fôlego, revelando o talento de Gerard Depardieu em Meu Tio da América nos 1980, e resgatando o bom e velho romance tradicional em Amores Parisienses, de 1997. O século 21 chegou, muitos astros e cineastas ficaram para trás com a rapidez das coisas no negócio que se tornou o cinema, mas Resnais continua por aí e, acredite, mais relevante do que nunca. Quem viu Medos Privados em Lugares Públicos sabe do que eu estou falando e também deve saber que o novo longa do diretor, Les Herbes Folles, segue pelo mesmo caminho. Estrelado mais uma vez por seus atores-fetiches Sabine Azéma e André Dussolier, o filme é um Romeu e Julieta mais dinâmico e, é claro, moderno. Georges é um escritor casado e pai de dois filhos que encontra a carteira de Marguerite, uma dentista frustrada com sua vida medíocre, e inicia um relacionamento intenso e inesperado com ela. Resnais, que baseou-se em uma novela de Christian Gailly para contruir a trama, esclareceu o que lhe atraiu no filme: “Esses personagens são capazes de resisitir ao desejo e praticar atos irracionais, o que dá enorme vitalidade à história e leva a quem assiste um tom de confusão muito saboroso”. Retornando ao festival quase tirnta anos depois de Meu Tio da América, Resnais e sua nova obra foram recebidos de forma diplomática pelos jornalistas.
Quentin Tarantino em um tapete vermelho é uma cena rara de se ver. O diretor de clássicos modernos do naipe de Pulp Fiction e Kill Bill não é exatamente o maior freqüentador dos grandes eventos de cinema mundo a fora e nunca foi de ficar horas parado fazendo poses para fotos diplomáticas. Talvez exatamente por isso, quando pisa em uma passarela rubra, Tarantino é uma explosão de carisma e energia. De volta a Cannes uma década e meia depois de sair de lá com a Palma de Ouro em mãos pelo explosivo Pulp Fiction, Taratino foi o evento do dia ao passar pela sessão de fotos antes da primeira sessão de seu novo filme, o esperadíssimo Inglorious Basterds. Ele fingiu atacar os fotógrafos, posou ao lado dos atores, mostrou seus famosos dotes de dançarinos acompanhado por uma belíssima Mélanie Laurent (Não se Preocupe, Estou Bem), que entrou na brincadeira de seu comandante e fez a alegria dos fotógrafos a beira do tapete vermelho. É claro, animação por parte deles já era de se esperar na premiére de um filme estrelado por Brad Pitt, que bateu recorde de câmeras em punho ao passar pelo tapete vermelho ao lado de seu esposa, Angelina Jolie. Pitt, aliás, terminou a rodada de entrevistas após a sessão de estréia do filme com o posto de uma das respostas mais interessante e mais reveladoras sobre o filme. Bastardos Inglórios, provável título da obra por aqui, propõe um jogo de verdade e ficção durante a Segunda Guerra, correndo paralelas as histórias de uma garota judia em busca de vingança contra o carrasco que exterminou sua família e a de um batalhão de soldados americanos renegados que se tornam heróis ao usar-se de força bruta para fazer os nazistas provarem de seu próprio veneno. Pitt interpreta o líder do batalhão, um homem naturalmente sério e cheio de suas regras, e u personagem que levanta questões sobre violência e vingança. Sobre a polêmica, Pitt disse: “Foi um dos papéis mais complexos que já fiz, pois como defender a idéia de justiça do personagem sem concordar com seus métodos? Uma coisa está ligada a outra, e numa guerra essas questões éticas são complicadas. Atualmente me interessa algo novo, que tenha frescor e eu não tenha explorado antes”. Já Tarantino foi mais expansivo quando perguntado sobre o tom de comédia quase impróprio que impõe a sua narrativa: “Alguns me perguntam se é um conto de fadas, porque esses homens fazem o que todo mundo teria gostado de ver na Segunda Guerra. Há alguns aspectos corretos nessa definição cômica, já que essa trama é fantasiosa, não ocorreu de verdade. Mas prefiro definir como uma tentativa de mudar o curso da história da maneira mais plausível possível, esse foi o maior desafio do filme”.
Há duas maneiras de exergar Sam Raimi e sua ainda curta porém notável filmografia. A primeira é como a obra de um cara cheio de estilo e referências, de um nerd de verdade que sabe como agradar o público ao qual ele mesmo pertenceria se não estivesse lá, vivendo o sonho de qualquer um. A segunda é como uma série de filmes com modismos repetidos, tiradas cômicas bem sacadas, roteiros “espertos” e um par de boas influências quando se trata de atuação e produção. Você escolha, mas de fato pouco importa. Porque a verdade é que Raimi é alguém, acima de tudo, que sabe equilibrar gêneros, gostos e vontades de forma magistral, deter o controle criativo absoluto sem abrir mão de ouvir segundas opiniões e sempre sair com o produto mais satisfatório possível no fim do processo. Drag Me to Hell, por exemplo, não tem nada de impressionante ou original. Mas é tamanho show do pirotecnia, diversão e equilíbrio cinematográfico que fica impossível não sorrir ao fim da sessão. Quase como aquela música que você sabe não ser a maior obra de arte do universo, mas se pega ouvindo de novo e de novo, assoviando pelos cantos, cantarolando baixinho. E Sam Raimi está em Cannes. Precisa de algum outro argumento? Brincadeiras e descrições a parte, Drag Me to Hell é uma das poucas participações inéditas na edição 2009 do festival de Cannes. Alojado nas famosas e temidas sessões da meia-noite do festival, o filme de Raimi acertou em cheio a uma platéia cansada de ver filmes que revertiam suas expectativas e entregou um produto perfeito dentro dos parâmetros em que se esperava. Repugnante, cheio de adrenalina, assustador em alguns momentos e de cenas cômicas no mínimo geniais. Saiu aplaudido com a história de uma gerente de banco que é amaldiçoada e perseguida por demônios após recusar o empréstimo de uma senhora idosa que se revela, mais tarde, uma bruxa. Na entrevista coletiva, o foco foi na mudança de projeto radical entre uma super-produção como Homem-Aranha 3 diretor para um terror de orçamento modesto: “Foi ótimo trabalhar em Drag Me to Hell porque o elenco é muito pequeno. Foi um amabiente muito íntimo, e isso é a única coisa que não curto realmente nos filmes do Homem-Aranha. Esses são mais como reger uma orquestra sinfônica, enquanto este último filme foi como tocar com um quarteto de jazz. Adorei trabalhar sem as restrições de um personagem que pertence a muitas pessoas e que muitas outras veneram”.
Nono dia: Quinta-feira, 21 de Maio de 2009
Em 1998, um então desconhecido Xavier Giannoli saiu do festival de Cannes com uma Palma de Ouro de melhor curta-metragem nas mãos. O troféu concedido pelo cultuado L’interview foi o passaporte de Giannoli para o time de realizadores renomados da França, posição consolidade com o sucesso internacional de Quando Estou Amando, história de um cantor romântico francês e começo da parceria com o célebre e talentoso Gérard Depardieu. Três anos depois, a dupla continua firme e volta a concorrer a Palma de Ouro por À L’origine, a inusitada história de um ex-presidiário que se faz passar pelo representante de uma grade empreiteira e constrói uma rodovia no meio do deserto com a ajuda de uma pequena comunidade abalada pelo desemprego. Depardieu pode ser o nome mais conhecido do elenco, mas quem brilha na pele do protagonista de dupla identidade é François Cluzet (Não Conte a Ninguém). O ator ganhou os elogios mais entusiastas a produção, que agradou bastante apesar da abusiva duração de duas horas e meia. Durante a coletiva de imprensa, Giannoli negou que tivesse feito o filme para retratar o abandono social de certas comunidades francesas, e ainda discutiu a moral de seu personagem. Segundo ele: “Sempre parto do personagem, do ser humano para uma história. Não me interessa retratar o social e sim o drama de uma pessoa. No caso de Paul/Philippe, ele ganha a confiança das pessoas e, apesar de tudo, se sente responsável por não decepcioná-las. Isso me interessou muito, a idéia de responsabilidade quando se conta com a crença das pessoas, um valor que deveria ser pensado por todos que são donos dessa confiança, principalmente os políticos”. Durante sua jornada de criminoso a benfeitor social, o protagonista ainda se envolve com a prefeita da cidade pela qual sua ferrovia passaria. A personagem, Stéphane, é interpretada por Emmanuelle Devos, que esteve em Cannes em jornada dupla. Além de À L’origine, a estrela francesa proomover também Las Herbes Folles, novo filme de Alain Resnais.
Michael Haneke, mais até do que um cineasta, é um sociólogo bastante competente. Indicado a quatro Palmas de Ouro até hoje e preferido antigo dos críticos de todo o mundo, o que Haneke faz com seu cinema é mostrar a nossa sociedade como ela é, sem concessões e censuras, e ainda lançando mão de recursos cinematográficos quase cruéis para mostrar ao espectador o quão ineficiente e hipócrita são nossas regras. As regras dele também, é claro. Mais conhecido por aqui como o diretor do brutal Violência Gratuita e do tenso Caché, Haneke foi a Cannes mais uma vez esse ano para apresentar sua visão sobre uma sociedade pautada por regras conservadoras e seus segredos por baixo do tapete. Das Weisse Band ou The White Ribbon é a história de um vilarejo exclusivamente protestante no interior alemão da década de 1910 que é abalado por acidentes estranhos demais para serem tratados como tal. Conforme os longos 144 minutos do filme vão se passando, a intimidade dos envolvidos nos acontecimentos vai sendo revelada com o requinte quase cruel da câmera de Haneke, que revela as faces problemáticas, destrutivas e autoritárias dos presumidamente normais moradores do local. Boa parte do filme, rodado em preto-e-branco, é narrado sob o ponto de vista de crianças e adolescentes, especialmente os filhos do pastor local, um homem totalitário que amarra uma fita branca no braço das crianças para lembrar-lhes de alguma punição. O elenco infantil foi bastante elogiado, assim como o equilibrado roteiro de Haneke. Pouco afeito a discutir sua obra, porém, o diretor pouco esclareceu na entrevista coletiva, preferindo deixar as inquietações de sua obra para os jornalistas analisarem. Segundo ele: “Me perguntam se é um microcosmo da Alemanha e eu respondo que é toda a Europa e todo o mundo. Onde houver uma idéia de fascismo, terrorismo, absolutismo, como queiram chamar, me interessa discutir. Há violência em todos os meus filmes. No mundo de hoje é difícil evitá-la”.
“O cinema brasileiro é de uma vitalidade e originalidade admiráveis”. E não sou eu que estou dizendo. As palavras aí em cima são do próprio Thierry Frémaux, presidente da equipe organizadora do Festival de Cannes e mestre de cerimônias para a premiere de À Deriva, filme tupiniquim que compete aos troféus da mostra paralela Um Certo Olhar. Brasil em Cannes não é novidade, uma vez que nosso praís tem até mesmo uam Palma de Ouro, concedida a O Pagador de Promessas em 1964. Quase meio século depois, o representante brasileiro na cidade francesa é a nova obra de Heitor Dhalia, um dos novos preferidos da crítica brasileira depois de colocar O Cheiro do Ralo nas salas de projeção com dinheiro do próprio bolso. Agora aliado com a 02 Filmes de Fernando Meirelles (Ensaio Sobre a Cegueira), Dhalia filmou um drama intimista, emocionalmente brutal e tecnicamente perfeito. Ou ao menos foram esses os comentários após a apaludia sessão da história de Filipa, uma adolescente que assiste a progressiva separação dos pais em plenos anos 1980, durante as férias da família em Búzios, e ao mesmo tempo tem sua iniciação na sexualidade. Nome mais conhecido internacionalmente do elenco, o francês Vincent Cassel (Fora de Rumo), apaixonado assumido pelo Brasil, atua como o pai da garota, um escritor que trai a mulher com uma americana. Ao lado dele, Débora Bloch retorna aos cinemas quase uma década depois do papel em Carandiru e é passa para trás pelo marido e por Camilla Belle, brasileira naturalizada americana que ficou conhecida por seu papel em 10.000 a.C. do diretor Roland Emmerich. O elenco é completo ainda por Cauã Reymond (Divã), que foi a maior atração dos fotógrafos, brasileiros ou não, ao passar pelo tapete vermelho com a companheira Grazi Massafera. Ele, que tem priorizado cada vez mais o cinema, disse: “Eu queria estar muito estar nesse projeto do Heitor, mesmo sabendo que meu personagem não teria muita participação. Cinema é o que mais gosto, tenho mais liberdade para me exercitar e criar tipos novos. Espero estar em breve em outro filme dele, quem sabe como o protagonista”. Enquanto isso, Dhalia se pronunciou sobre a boa reação a seu filme: “O filme parte de minha experiência pessoal, mas trata de um tema universal, que é a separação de um casal, o olhar de um adolescente sobre isso e a violência que esmaga a infância”.
Décimo dia: Sexta-Feira, 22 de Maio de 2009
Sharon Stone com lágrimas nos olhos não é algo que se vê todos os dias. Acostumada a interpretar tipos classudos, sedutores e fortes no cinema, Sharon não escondeu a emoção ao comandar o jantar de gala da fundação AmfAR, fundação americana engajada na luta contra a AIDS, um dos eventos mais disputados do décimo dia do festival de Cannes. A estrela dividiu o comenado da cerimônia com o ex-presidente americano Bill Clinton, e apresentou a cantora britânica Annie Lennox, que entreteu os célebres convidados enquanto uma variedade de coisas eram leiloadas no palco. Entre os objetos mais disputados da noite estiveram um saxofone assinado pelo próprio Clinton, obras de arte de pintores consagrados e uma viagem para seis pessoas nas ilhas Galapagos a bordo de um iate. Essa última alcançou o maior lance, de 1 milhão de dólares. O evento ocorre em Cannes desde 1993, e desde então conseguiu arrecadar mais de 44 milhões de dólares para a luta contra a doença que afeta boa parte da população mundial. Quem fez a festa dos fotógrafos no evento, porém, foi mesmo Robetr Pattinson, a sensação adolescente do momento, intérprete do vampiro Edward em Crepúsculo. Além de convidado do evento, Pattinson subiu ao palco ao lado de Sharon para leiloar… um beijo na bochecha. Inspirado, Pattinson brincou: “Se der certo, pode virar algo mais”. Depois de concorridos lances, os pais de uma adolescente levaram “o lote” por quase 28 mil dólares. Ainda durante o evento foi anunciado o primeiro prêmio de Cannes 2009, a bem-humorada Palm Dog, que premia já há algum tipo os melhores “atores caninos” da edição. O vencedor do ano foi Dug, o cão que aparece no longa-metragem Up, da Pixar. A brincadeira com o prêmio seguiu com a Vergonha Canina do Ano, e quem levou foi o filipino Kinatay, que tem uma cena de atropelamento de cachorro.
Talvez seja um pouco cruel marcar alguém tão talentoso quanto Terry Gilliam como um cineasta amaldiçoado. Ao mesmo tempo, é fato que as ambições e sonhos de um diretor capaz de produzir grandes obras-primas têm vez ou outra se tornado um problema. Nem vemos entrar em detalhes sobre The Man Who Killed Don Quixote, o lendário “filme que não queria ser feito”, mesmo porque basta dizer que entre as adversidades encontradas pelo diretor logo no início das filmagens estiveram uma imprevista inundação, mudanças de paisagem e até uma dupla hérnia de disco sofrida pelo protagonista. Perto disso, os estouros de orçamento e cronograma de As Aventuras do Barão de Munchausen são brincadeira, mas é como o velho ditado diz: “não acredito em fantasmas, mas que eles existem…”. Brincadeiras a parte, o que atingiu a produção de The Imaginarium of Doctor Parnassus, primeira obra do diretor depois do relativo fracasso do ambicioso Os Irmãos Grimm, não é algo para se brincar. Foi em Janeiro do ano passado, quando o filme de aproximava da metade de suas filmagens, que uma tragédia atingiu o mundo e, mais de perto, o próprio Gilliam. Heath Ledger foi encontrado morto em seu quarto, presumivelmente por overdose de remédios. O que pouca gente comentou na época é que Ledger deixara também um trabalho inacabado, justamente o protagonista Tony da fábula de Gilliam sobre um viajante de dimensões que se apresenta em uma companhia de teatro transcendental. De certa forma, é impossível negar que o filme ganhou muito mais publicidade com a morte do protagonista, e ainda mais com o anúncio de que não um, mas três outros atores tomariam o lugar de Ledger em um arroubo de ousadia integrado a trama do roteiro do próprio Gilliam ao lado do velho parceiro Charles McKeown (O Retorno do Talentoso Ripley). Os nomes para a substituição impressionaram mais ainda: Johnny Depp (Sweeney Todd), Jude Law (Closer) e Colin Farrell (Na Mira do Chefe). No time de estrelas do elenco ainda tem lugar para Christopher Plummer (Á Noviça Rebelde) no papel título e Verne Troyer, conhecido como o “Mini Me” da franquia Austin Powers. Esse último, aliás, foi a estrela da sessão de fotos da aplaudida premiere do filme de Gilliam, que provocou polêmica ao comparar seu Tony a um famoso chará. Nas palavas dele: “De certa forma, a idéia inicial de Tony foi baseada em Tony Blair, uma pessoa de quem eu gosto muito. Não podia imaginar um começo mais adequado a este personagem que não pendurado em uma ponte. Tony acredita no que quer que saia da boa dele mesmo que ele nunca tenha pensado nisso até dizer. Aí está o nosso homem. O nosso homem do Oriente Médio. Enquanto Gaza estava a ser bombardeada ele estava a receber uma medalha de George Bush, é assim que se lida com a paz do Oriente Médio. Bom trabalho, Tony”.
O Oriente Médio é um barril de pólvora. A expresão, muito comum entre jornalistas e estudiosos da região mais explosiva do mundo, se esquece de mencionar, considerar ou pensar que também existem seres humanos naquela região. Alguns que nada tem a ver com o radicalismo e os conflitos milenares sem sentido que se desenrolam desde sabe-se lá quando. Talvez acima de tudo por isso, Elia Suleiman é um homem de sorte. Israelense de nascença, palestino por criação, o cineasta surgiu para o mundo em 2002 com seu Intervenção Divina e desde então vem crescendo no conceito dos críticos com seu cinema pessoal e emocionante, sem grandes modismos narrativos, uma espécie de realismo brutal e tocante que mostra o lado humano de uma região que estamos acostumados a ver em mapas, que esconde as explosões mais deixa o espectador senti-las ocorrerem por todo o lugar. The Time That Remais só não é um documentário porque se utiliza de encenações para recriar imagens há muito perdidas da família e da vida… de seu própro diretor. Em um relato estático, pulsante e tocante, Suleiman se coloca em frente a câmera e expõe seus próprios dramas, partindo de 1948, quando seu pai lutou contra os israelenses em uma resistência clandestina e chegando até os dias presentes, quando assiste a sua mãe já doente em uma cama de hospital. A saga do cineasta conquistou o público e os jornalistas que compareceram a premiere da obra no décimo dia do festival de Cannes. Ovacionado por vários minutos, Suleiman viu críticos de renome saírem da sessão de sua obra com lágrimas nos olhos, encantados com a mistura agridoce de comédia sutil e drama realista, e ainda foi bombardeado por elogios e questões na coletiva de imprensa que sucedeu a sessão. A pergunta tradicional das razões para se fazer um filme ganhou nova dimensão nas palavras de Suleiman: “Queria reproduzir no cinema a sensação de escutar música, oferecer uma mensagem em uma linguagem que não tenha que ser traduzida, que mesmo sem saber a letra, se possa apreciar a canção. Como palestino, é muito difícil abordar uma trama sem se deparar com a história do nosso país. Eu queria contar algo pessoal. Não tenho vontade de gastar minha energia em analisar como está o mundo”. Saiu com aplausos e com comentários sobre a Palma de Ouro, que se aproximava cada vez mais.
Décimo primeiro dia: Sábado, 23 de Maio de 2009
Às vezes se paga o preço por ser o último de uma filha brilhante. A última estréia da lista dos filmes que concorriam pela Palma de Ouro do ano, Map of The Sounds of Tokyo veio prometendo sensibilidade, tragédia e romance nas mãos de uma diretora que já tinha mostrado habilidade em lidar com tais elementos em tempos passados. A mulher em questão, Isabel Coixet, vem tomando seu lugar como principal realizadora espanhola desde a década de 80 e até ganhou algum espaço na capital do cinema com trabalhos mais acessíveis como A Vida Secreta das Palavras e Fatal, recente e poético romance estrelado por Penélope Cruz e Ben Kingsley, célebre pelas cenas tórridas entre os dois. O elementro sensual ousado da diretora também está presente na nova obra, a história de um vendedor de vinhos espanhol que vai a Tóquio acertar um negócio e acaba se estabelecendo por lá, engatando um relacionamento que termina de forma trágica com o suicídio da garota. É depois de traumatizante experiência que David conhece outra adorável moça e se envolve em uma nova relação sem saber que a conquista é na verdade a irmã de sua ex-namorada, em busca de vingança. A trama de encaminhamento apoteótico recebeu a maior vaia registrada na edição 2009 de Cannes, fechando a lista de indicados a Palma de Ouro já indiscutivelmente fora de cogitação. A entrevista de imprensa, porém, foi bastante tranqüila, especialmente em se tratando do ator espanhol Sergi López, conhecido por aqui graças a sua visceral interpretação em O Labirinto do Fauno na pele de um cruel capitão do exército. Falando polidamente sobre a experiência de encarnar um personagem com tamanha complexidade emocional e ainda ter de superar a barreira das línguas, López disse: “Para mim foi uma experiência muito próxima, porque faço muitos filmes franceses e sempre me sinto um estrangeiro por aqui. Tive essa mesma sensação quando filmei em Tóquio, numa sociedade que é muito mais fechada para nós ocidentais por causa da língua e da cultura. Ouvi muita gente dizendo que David é um estereótipo, mas isso é a visão ocidental. As japonesas me parecem ser mais púdicas e carregam uma culpa em relação ao sexo, justamente o que a personagem de Rinku Kiguchi precisa superar para cumprir sua missão”.
Temporada de prêmios aberta! Apostas para todos os lados, tensão e expectativa entre os concorrentes, uma platéia imensa de jornalistas prontos para bhater uma foto do filme vencedor e eventos luxuoso para anunciar os grandes ganhadores da 62ª edição do festival de Cannes. A descrição aí em cima pode não ter sido exatamente o que aconteceu no décimo primeiro dia na cidade francesa, que ainda aguardava o dia seguinte para conhecer a Palma de Ouro do ano, mas é fato que a concessão de prêmios da mostra paralela Un Certain Regard mobilizou a imprensa e proveu um bom aquecimento para quem roía as unhas ansioso com o anúncio dos grandes vencedores. Como sempre remando contra a maré, o júri da mostra, presidido pelo cineasta italiano Paolo Sorrentino (O Amigo da Família), resolveu premiar o eficiente estudo das relações inter-pessoais que o grego Yorgos Lanthimos, desconhecido em terras brasileiras, propôs em seu drama Kynodontas. O filme, terceiro de sua carreira, é um tratado desconcertante sobre autoridade e intransigência, focando na figura de um pai rígido que mantém o restante da família isolada do mundo pelos altos muros de uma fortificada propriedade. Levado em um tom que vai do leve ao chocante, Kynodontas é uma história que concede ao espectador uma dose refrescante de sentimentos reais e fortes. O filme foi elogiado até mesmo pelos seus concorrentes, incluindo nesse barco o brasileiro Heitor Dhalia, que saiu satisfeito com a recepção de seu filme, À Deriva, e conferiu credibilidade a ladainha de sempre: “É clichê, mas ser selecionado para estar aqui em Cannes já foi uma experiência maravilhosa. A recepção do nosso filme foi emocionante, um dos momentos mais lindos da minha vida, e receber comparações com gente como Eric Rohmer e François Ozon é uma honra impossível de descrever”. Além de Kynodontas, saíram vitoriosos da mostra Un Certain Regard outros três filmes. O romento Politist Adjectiv levou o grande prêmio da crítica e o troféu do júri, enquanto o iraniano Kasi Az Gorbehaye Irani Khabar Nadareh e o francês La Pére de Mes Enfantes faturaram dois prêmios especiais. E a tempoada estava só começando.
Ser a última premiere de um Festival de Cannes tão agitado e ainda estrear logo após uma batelada de prêmios concedidos não é tarefa para qualquer um. O malaio Ming-Liang Tsai, porém, passa longe de ser apenas mais um no mar de realizadores insignificantes por aí. Multi-premiado em todos os festivais europeus e com bastante crédito entre os apreciadores mais profundos de cinema, ele é mais conhecido por aqui graças a O Sabor da Melancia, filme que saiu de Berlim em 2005 com três troféus. Na busca por sua Palma de Ouro desde 1998, quando foi indicado pela primeira vez por seu criativo O Buraco, Tsai chega para a 62ª edição do festival francês com um filme que tem tudo para agradar os donos da casa. E ainda não estamos falando de méritos cinematográficos. Para começar, Visage é um dos primeiros de uma leva de filmes que foram e serão filmados nos corredores mais famosos da Europa, os do Museu do Louvre, em Paris. Se isso já não fosse o bastante para agradar a platéia antes mesmo das luzes se apagarem, Tsai ainda conseguiu reunir três lendas do cinema francês sob seu comando. A mais breve e mais notável é a magnífica Jeanne Moreau (Jules & Jim), que não dava as caras em Cannes desde 2003, quando recebeu a Palma de Our honorária pela contribuição a arte de fazer cinema. Ao lado dela, Fanny Ardant (8 Mulheres) concede brilho a divertita produtora linha-dura que inferniza a vida do protagonista, um cineasta oriental que consegue permissão para filmar dentro do museu um filme sobre o mito de Salomé. É na sua escolha para atuar como o protagonista da obra que entra Jean-Pierre Léaud, ator preferido do falecido François Truffaut (Beijos Roubados), que há algum tempo não ocupava um papel de destaque nas telas de cinema. Em Visage ele interpreta o escolhido do protagonista para estrelar sua obra, uma espécie de versão mais rabugenta de si mesmo. Assediado nas coletivas de imprensa após a aplaudida sessão do filme, Léaud destacou a importância de obra para ressucitar uma lendária tradição do cinema francês: “O que Ming-Liang fez aqui é um milagre. Ele reuniu um elenco único para um momento antológico, aquele que diz respeito a um período fundamental do cinema que perdeu a voz há muito tempo. Estamos comemorando 50 anos de nouvelle vague, mas daqui a pouco volta-se a esquecer a importância dela. Mas o filme de Tsai ficará aíu para sempre lembrá-la”.
Décimo segundo dia: Domingo, 24 de Maio de 2009
Vamos direto ao assunto: a premiação de Cannes 2009 não pode sob nenhuma circunstância ser chamada de mais ousada da década. É verdade, o favorito teve que se conformar com um prêmio secundário enquanto um coadjuvante tomava o holofote principale as portas do cinema mundial finalmente se abriam para o cinema sem concessões e de profundos estudos psicológicos do austríaco Michael Haneke. Mas Cannes não é só a Palma, e entre prêmios menos importantes e discursos longos aristocráticos, o festival francês fechou sua 62ª edição com uma premiação pulverizada, quase cautelosa, que se permitiu alguns arroubos de ousadia para injetar um pouco de energia aos comentários sobre a lista de ganhadores. Impossível negar, por exemplo, que Brillante Mendoza subiu ao palco como uma zebra vitoriosa para recer seu troféu de melhor diretor, muito menos que os prêmios de interpretação foram extremamente bem escolhidos. Sem hipocrisia aqui, aliás. Pouco conhecidos e sempre polêmicos, os dois ganhadores venceram mais por mérito e menos por nome, fechando a lista para lá de justa dos que saíram vencedores da riviére francesa. Além dos já citados, o chinês Lou Ye e seu Spring Fever, que provocou polêmica ao ser banido no país de origem, levaram a coroa de melhor roteiro, enquanto seu amigo Park-Cahn Wook saiu da noite com o troféu do júri pelo terror Thrist. Outro prêmio bem disputado, a Camera D’Or do ano surpreesndeu ao laurear o australiano Warwick Thornton, pouco conhecido fora de seu país, pela estréia em longa-metragens com a história de amor Samson and Delilah. Os prêmios foram fechados com a Palma de Ouro para curtas, conquistada pelo português João Salaviza e seu controverso Arena. Abaixo, as fotos e os discursos dos principais premiados:
O austríaco Michael Haneke, diretor de filmes como Violência Gratuita, e sua Palma de Ouro por Das Weisse Band, que garantiu distruibuição brasileira sob o título de A Fita Branca. O clima opressor do filme baseado na Alemanha nazista conquistou os críticos e desbancou o favorito da casa, Un Prophéte. “Minha mulher às vezes me faz uma pergunta muito feminina: você está feliz? É muito difícil responder, eu acho, porque felicidade é uma coisa rara. Mas agora eu posso dizer que esse é um momento da minha vida onde eu estou realmente feliz”.
O francês Jacques Audiard, favorito ao prêmio principal desde que seu Un Prophéte estreou, leva o certificado de consolação concedido pela crítica em seu Grand Prix de Cannes. O bom-humor não saiu de voga, e o filme deixou a riviére francesa com distribuição americana garantida pela Sony Classics. “No meu filme, que queria fazer que um herói se parecesse assim como eu e vocês, mas que também mata porque o ambiente pede isso dele. Então você pode se identificar com ele. É ficção, não vem de lugar nenhum. E é notável que tenha chego até aqui”.
O filipino Brillante Mendoza, mesmo com toda a polêmica provocada por seu sombrio Kinatay, não teve o talento com a câmera ignorado pelo Júri, que justamente concedeu ao cineasta o prêmio de Melhor Direção do ano. “Primeiramente, eu gostaria de agradecer ao comitê de seleção por trazer meus filmes para cá pelos últimos três anos. Esse prêmio é dedicado a minha filha, Angelica, que sempre foi minha crítica número um, e a um ator que eu respeito muito, Coco Martin. Obrigado a todos por abraçarem meu tipo de cinema”.
O ator asutríaco Christoph Waltz conquistou seu lugar no conceito dos críticos presentes em Cannes e passou a perna em uma batelada de astros, incluindo seu companheiro de cena Brad Pitt em Inglorious Basterds, nova obra de Quentin Tarantino. No papel de um oficial nazista, Waltz é explosão do começo ao fim no épico de guerra do diretor. “Preciso agradecer a muita gente, mas especialmente a Brad Pitt, por ter me permitido ser seu parceiro em cena. E principalmente ao Coronel Landa e seu inimitável criador. Quentin Tarantino. Quentin, preciso te responder: você me devolveu minha vocação!”.
A franco-inglesa Charlotte Gainsbourg e sua interpretação visceral no criticado Anticristo, do sempre polêmico Lars Von Trier (Dançando no Escuro), passaram por cima de toda a controvérsia e chegaram triunfantes ao palco principal das premiações do festival. Aplaudida ao subir ao palco, Charlotte recebeu o prêmio de melhor atriz do ano. “Foi a experiências mais intensa da minha vida. Fui fundo, me violentei para chegar até uma composição que eu mesmo considerasse boa. Nunca fui uma pessoa popular, porque nunca falei muito, era a minha forme de se proteger contra tudo o que era falado sobre meus pais. Serge, papai, espero que esteja orgulhoso de mim agora”.
Depois…
Cannes terminou. Mas já falamos demais do que passou pelas ruas ensolaradas da cidade francesa, tanto que talvez seja bem mais produtivo pararmos um pouco para pensar naqueles que não ficam por lá apenas para os doze dias do festival. Sim, porque tão rápida e tão belamente quanto um pôr-do-sol, passou por Cannes, a cidade, um furacão de astros e estrelas do cinema que desfilaram por tapetes vermelhos, freqüentaram festas que fizeram a alegria dos paparazzi e foram a premieres cheias de fotógrafos que terminavam em coletivas de imprensa concorridas. Por doze dias, também, Cannes foi Babel. Todas as línguagens, visões e estilos do mundo lá estiveram para uma grande festa que, para além dos flashes, se propunha a falar sobre cinema. Não sobre o mundo, não sobre a sociedade. Sobre cinema. Um microuniverso rico e fascinante que por pouco tempo se deixou estudar concentradamente, às vezes, em uma única sala de projeção. Pleas ensolaradas praias da pequena Cannes passaram grandes nomes que ascendem a curiosidade mundo afora, cuja fama e cuja notabilidade ultrapassam fronteiras e se fazem notar para muito, muito longe de onde vivem. Literalmente, o mundo esteve em Cannes. E agora, de repente, da noite para o dia, Cannes é apenas mais uma cidade. Pequena, não um grande póloco comercial ou industrial. Apenas mais uma vila francesa, ou quase isso. Não deve ser fácil se acostumar com a nova (velha) rotina depois de tanta e tão breve agitação. E é quase irônico pensar do que Cannes vive quando os tapetes vermelhos são enrolados e guardados, a espera do próximo ano. De expectativas, talvez. De apostas, quem sabe. Se bem que, em se tratando do festival mais prestigiado e badalado do mundo, o melhor mesmo é esperar que venham mais surpresas. Até 2010.
Bom, pessoal, e esse foi o maior post da história do Filme-Pipoca! E eu demorei quase uma semana para prepará-lo do jeitinho que ficou, começando do momento em que tudo estava definido em Cannes e terminando hoje! Bom, espero que seja o bastante para cobrir um evento tão importante e tão amplo. Agora podemos voltar a vida normal. Cannes, só ano que vem. Os melhores filmes para vocês e até a próxima!