domingo, 21 de junho de 2009

Filadélfia – Amor, contradição e emoção verdadeira em uma obra-prima importante e eterna.

phila 

Filadélfia (Philadelphia, EUA, 1993).

De: Jonathan Demme.

Com: Tom Hanks, Denzel Washington, Antonio Banderas, Jason Robards, Joanne Woodward.

125 minutos.

Não é fácil nem mesmo falar sobre amor, que dirá criar um do nada. O sentimento mais nobre do ser humano é de uma complexidade e inconstância tremendas, impossíveis de se mapear, prever ou simular. Há um certo caráter único sobre cada tipo e cada espécie de amor que torna ainda mais árdua a tarefa dos que ousam tentar defini-lo, domá-lo ou, tão freqüentemente, usá-lo para enriquecer uma obra de ficção. Talvez por causa de tamanha complicação, histórias de amor dependem de momento, de intenção, de uma concordância quase cósmica entre quem estava atrás da câmera e quem está sentado na platéia, para funcionar em uma sala de projeção. É claro, nesse processo está envolvida muita ponderação, precisão mais do que cirúrgica, e as probabilidades de todas essas barreiras ficarem para trás quando gente talentosa está envolvida são infinitamente maiores. Filadélfia é uma história de amor, mas não uma convencional. É uma história de amor fraterno, de um afeto e um envolvimento construídos aos poucos por lados aparentemente antagônicos que se juntam por uma causa e, como num passe de mágica, desfazem as próprias contradições. É uma narrativa habilidosa, cheia de camadas e de emoção verdadeira impossível de descrever, que chega ao final e faz aflorar as lágrimas sinceras que qualquer outra história romântica sempre sonhou. É um triunfo, de cinema e de realidade, que tem algo a dizer para o mundo fora de sua encenação realista, mas não perde o foco nos personagens e nos seres humanos que eles precisam se tornar para envolver a platéia da forma necessária para que a mensagem seja passada e aquela trama deixe as marcas profundas que foi feita para deixar. Sim, Filadélfia é um filme com uma causa a defender, é parte do engajado cinema-denúncia que tantas vezes os críticos desprezam como “panfletagem inútil” ou qualquer outra expressão cínica que prefiram usar. Mas é também uma jornada de emoção verdadeira e andamento tão lento quanto a deterioração da doença que todos temiam no início da década de 1990, quando o filme foi lançado e a AIDS ainda era uma praga desconhecida que provocava medo e reações irracionais. Afinal, a vida de cada um estava em jogo, e não parecia antiético, ao menos naquele momento, discriminar alguém que, você pensava, poderia te condenar a uma lenta e dolorosa morte se chegasse perto demais. Quem sofria com isso, é claro, eram os atingidos pela síndrome, que tinha que lidar com uma população pouco informada sobre o mal que temiam e acabavam jogados de lado, descartados, isolados. Discriminados. Na época, não parecia preconceito, mas hoje talvez fosse um caso fácil de se resolver na justiça. Os tempos mudaram, mas como toda verdadeira obra-prima, Filadélfia continua grandiosa e tocante, resistindo bravamente ao tempo que mudou todas as circunstâncias de sua trama, que poderia até soar banal, distante dos dias de hoje, se não tivesse seres humanos de verdade envolvidos. É por eles, e não por uma causa, que derramamos todos nós nossas lágrimas.

Concentrar narrativas em personagens capazes de envolver o público sempre foi uma estratégia infalível para criar grandes obras, e é seguindo justamente esse caminho que Filadélfia encontra seu diferencial e seu ponto de decisão entre a emoção barata e a verdadeira. É notável, porém, imaginar o quão menos envolvente a mesma narrativa poderia soar nas mãos de um roteirista menos sutil e sensível que o inconstante Ron Nyswaner (O Despertar de Uma Paixão), encontrando o pico de sua carreira na história improvável de um homem que desafia o sistema e luta pela própria liberdade em um mundo que tem medo dele próprio. Sim, porque Andrew Beckett é um pioneiro, um obstinado explorador de novos caminhos que encontra uma causa própria para dedicar sua limitada, quem sabe até curta, vida. Andrew é o jovem e talentoso advogado que se torna a estrela em ascensão de uma conservadora firma, é presenteado com os casos mais importantes e apresenta sem medo suas opiniões ousadas ao chefe, encantando com seu talento. Isso até todos descobrirem que Andrew é homossexual e, ainda mais, é portador do vírus da AIDS. A desventura motivada pelo medo e pelo preconceito leva Beckett a buscar paz em um processo contra seus ex-empregados, criando um caso na justiça que nenhum outro advogado, em sã consciência, aceitaria. É na busca por um defensor da lei que o caminho de Beckett cruza com o de Joe Miller, advogado negro conhecido do povo americano graças a suas propagandas televisivas sobre direito do consumidor, um aventureiro capaz de correr riscos que, dizem, nenhum outro em sua área aceitaria. Justamente o que Beckett precisa, ou pelo menos é isso que parece até descobrirmos que Miller, além de não ter nenhuma informação concreta sobre a AIDS, é homofóbico. É de fato um grande passo a frente para um filme com esse tipo de trama que os dois simplesmente não se unam de uma vez, contrariando os próprios princípios no que seria chamado pelos críticos mais inocentes de “ímpeto de ousadia” ou “espírito de inovação”. Aqui, as coisas acontecem em seu ritmo natural, e a habilidade de Nyswaner ao conduzir a integração dos dois protagonistas, contradições íntimas em pessoa, é notável. As cenas de tribunal, então, são demonstrações do talento de um roteirista capaz de criar diálogos memoráveis e situações marcantes sem precisar tornar os personagens dentro delas bidimensionais. Ironicamente para um roteiro que trata e se utiliza tão bem de oposição de idéias e sentimentos, não há nenhum momento em que as ações de um personagem soem falsas, precipitadas ou atípicas. Tudo corre conforme deveria. De algum modo, soa como se tivesse acontecido de verdade, e esse nível de realismo muito influi no envolvimento que Filadélfia provoca no espectador. Enfim, é por causa da liga forte do roteiro de Nyswaner que cada um dos outros talentosíssimos elementos envolvidos em Filadélfia conseguem brilhar com tamanha intensidade, sem nunca ofuscar a importante, relevante e emocionante história que se passa na tela.

A começar por Jonathan Demme, um dos mais subestimados grandes mestres do cinema americano. Em um de seus momentos de maior glória na carreira, ele seguiu o suspense O Silêncio dos Inocentes, filme que lhe rendeu a estatueta da Academia de melhor direção, com esse épico dramático e polêmico que estreou prometendo trazer uma mensagem importante em um envoltório dramático que provocava medo entre os pouco chegados a um bom drama. No final, o Filadélfia construído por ele se mostrou uma obra capaz de transpassar gêneros e gostos para soar forte na razão e na emoção de qualquer um que fosse capaz de olhar a sua volta e ver alguma coisa. Com controle narrativo irretocável e uma câmera que se despiu de modismos para simplesmente vigiar uma trama que falava por si mesma, Demme faz um trabalho memorável observando desempenhos interpretativos espetaculares e construindo uma ambientação que muito merece de mérito pelo envolvimento que Filadélfia provoca no espectador. Em especial na cena do último depoimento de Beckett em corte, uma das mais aflitivas e opressoras da história do cinema, sua câmera é elemento fundamental para a compreensão absoluta do que ocorre em tela. É vigilante, é detalhista, é inteligente, mas acima de tudo é parte indissociável do cenário que compõe. Em suma, Demme é quase como os brilhantes olhos privilegiados do espectador, e realiza um trabalho que merecia mais destaque do que teve a época do lançamento do filme. A bem da verdade, porém, uma direção tão competente foi jogada de escanteio pela causa nobre da forte impressão que os atores em cena, mais especialmente a dupla de protagonistas, provocou no público. E eles são os culpados por traduzir um roteiro complexo em emoções simples e fascinantes que transparecem não em rostos de atores, mas em rostos de personagens. A começar pelo protagonista absoluto de Tom Hanks, aqui no papel que lhe rendeu o primeiro de dois Oscar seguidos, quebrando seu próprio paradigma de ator cômico para brilhar em uma performance completa, plena em cada segundo de tela e absolutamente dominante dos momentos em que a câmera de Demme se concentra em vigiá-la. Seu Andrew Beckett é carismático, luminoso, perseverante e adorável, mas tem um toque de amargura na voz e um brilho triste nos olhos que não se traduzem em palavras porque são complexos demais, mas reluzem na interpretação de Hanks. Muito se disse sobre a cena em que seu personagem recita uma passagem da ária “Andrea Chenier”, e de fato se trata de um desempenho apaixonado, entregue, não menos do que perfeito, cheio de emoção que atinge o espectador de uma forma que poucas outras produções, cinematográficas ou não, jamais conseguiram. Ao lado dele, é claro, Denzel Washington não deixa por menos em uma das numerosas e memoráveis performances que entregou ao seu público durante o começo da década de 1990. Na pele de Joe Miller, o ator faz jus ao roteiro e cria emoções autênticas, contidas, mas especialmente retumbantes, para representar um personagem que, nas mãos de outro qualquer, poderia ficar sob a sombra da grande e carismática figura de Beckett. Não é o caso na interpretação acertadíssima do grande ator que Washington sempre foi, aqui entregando fechamento e humor a um único tempo, fazendo de Miller tão protagonista quanto Beckett, da forma como foi idealizado no roteiro. Entre os coadjuvantes, vale destacar a presença cheia de classe de Jason Robards (O Dia Seguinte) no vilanesco papel do ex-chefe de Beckett e a galhardia competente de um jovem Antonio Banderas (A Lenda do Zorro) como o namorado latino do mesmo. Virtudes menores que tem pouco tempo para brilhar em um filme que concentra sua narrativa e encontra a mais pura das emoções, do triunfo ao remorso, do começo ao fim. Afinal, não é o amor a própria contradição?

Nota: 9,0

Nenhum comentário: