domingo, 26 de julho de 2009

Coração de Tinta – Magia dos dois lados da tela

ink

Coração de Tinta (Inkheart, Alemanha/Inglaterra/EUA, 2008).

De: Iain Softley.

Com: Brendan Fraser, Eliza Bennett, Paul Bettany, Andy Serkis, Helen Mirren, Jim Broadbent, Sienna Guillory, Jennifer Connelly.

106 minutos.

Os leitores vorazes que por ventura estiverem passando os olhos por essas linhas devem concordar comigo que não raro há um gosto especial nos mundos que surgem em nossa mente durante a leitura. Tão especial que, muitas vezes, mesmo que por breves instantes, desejamos com todas as nossas forças viver aquela história por nós mesmos. O mundo de papel pode ser muito mais atraente que o de carne e osso que vemos e vivemos todos os dias, e cada criação humana e tão única em suas palavras que é impossível evitar um desejo, por mais secreto que seja, de que tudo aquilo se torne em verdade. Mesmo preso no mesmo mundo da ficção do qual tira personagens bem familiares ao espectador e ao leitor, Coração de Tinta deve a maior parte do envolvimento e fascinação que causa a esse antigo e arraigado sonho humano, romantizado pela escritora alemã Cornelia Funke na novela infanto-juvenil de fantasia e aventura homônima lançada em meados de 2003, tudo por meio do esperto e de certa forma antigo conceito de “Língua de Prata”, espécie de rara habilidade nata que leva as pessoas a materializar aquilo que lêem em voz alta. Sempre cuidadosa com a própria escrita, Funke construiu em papel uma ode a literatura e uma deliciosa aventura cheia de encantamento e povoada por personagens construídos com esmero digno da apreciação de qualquer crítico exigente ao mesmo tempo em que a fez movimentada por um ritmo dinâmico e peculiar capaz de prender o leitor mais casual. Em meio a tudo isso, ainda ganhávamos de graça uma leitura lúdica, quase escapista, que usava uma premissa por si só interessante para explorar criações próprias de uma forma no mínimo incomum. Mesmo quando eram tirados de um “livro dentro do livro”, os personagens de Funke tinham alma, vida própria e, portanto, não deixavam dúvida ao leitor de sua capacidade de sair do mundo da ficção. Feito meia década depois de o livro explodir mundo afora e até ganhar uma continuação, Coração de Tinta, o filme, prefere um caminho mais arriscado e mais visual ao transformar esses mesmos personagens em caricaturas que povoam um mundo mais do que real e podem se provar tão perigosas quanto as ameaças das quais fugimos ruas afora. A força da palavra escrita ainda é o cerne da trama, mas de alguma forma a tradução visual das peculiaridades do material original pediu adaptações que podem ou não agradar aqueles que viveram a experiência literária de forma mais marcante. No final das contas, porém, o filme deixa intacto o caráter escapista e a fascinação natural que a trama tem, criando um universo que tem brilho próprio e apoiando-se em um elenco sólido para representar bem aqueles personagens que estavam nas palavras de Funke, enquanto o roteiro se preocupa mais em dar ao espectador a sensação de estar embarcando em uma aventura tão verdadeira quanto fantástica. O equilíbrio é complicado, de fato, mas Coração de Tinta consegue se aventurar entre o humano e o ficcional com competência notável e acaba sendo acima da média para as recentes investidas cinematográficas no terreno da fantasia. Real ou não, aqui estamos nós diante de mais um mundo que merece nossa atenção, seja em papel ou em imagens.

Obviamente, quando falamos na criação de um mundo atraente e o assunto é cinema, a imensa maioria dos créditos deve ir ao roteiro, que precisa buscar o equilíbrio entre a caracterização do cenário e a relação entre os personagens, sempre quesito fundamental em qualquer trama que ambicione envolver seu espectador. No comando desse barco, é admirável a audácia do americano David Lindsay-Abaire, mais conhecido pelo texto da animação Robôs e futuro autor do roteiro de Homem-Aranha 4, que escolhe a rota mais turbulenta para administrar tão complexa gerência e se aproveita do tempo limitado de que dispõe para focar em um grupo concentrado de protagonistas e torná-los no símbolo quase vivo daquele conceito arraigado que se torna em magia na trama. Os coadjuvantes são meras caricaturas, cuja ficção está naturalmente estampada em seus rostos, mas de alguma forma se tornam ingredientes indispensáveis para uma receita ousada que prova dar certo em meio a soluções bem-armadas de roteiro. São eles, as caricaturas, que formam a sólida base e muitas vezes fazem o papel de alavanca para que um trio inusitado de protagonistas venha a se tornar justamente o tipo de personagem que desejamos mais profundamente que se tornem em realidade. Ironicamente, o texto de Abaire faz de tudo para que por breves instantes eles sejam, criando diálogos que soam reais sem precisar recorrer ao caminho fácil do exagero melodramático e montando situações que colocam sob uma perspectiva diferente o caráter e os objetivos que movem cada um desses personagens. A mistura resulta em um texto de profundidade rara no gênero a que pertence. É a pura magia que está incutida na trama sendo transferida para o espectador, e de alguma forma é nessa inesperada transferência que o texto de Abaire prova que, ao menos dessa vez, a rota mais arriscada pode ser a correta, triunfando em um clímax que consegue emocionar, liberar adrenalina e gerenciar com cuidado o destino de cada um dos personagens, substituindo a surpresa baseada em um único conceito que movimentava a novela pela de um final que pouca gente espera nos dias cínicos por que Hollywood está passando. Sim, aqui estamos nós diante de um fim de conto de fadas, mas de certa forma esse conceito tão ultrapassado serve como uma luva para o mundo de tinta que se tornou em imagem pelo texto de Abaire, uma espécie completamente diferente do de Funke, e não por isso menos encantador. Coração de Tinta, o filme, é centrado em Mortimer “Mo” Folchart, um encadernador com a rara habilidade de trazer ao mundo real os personagens dos livros que lê em voz alta. Como tudo nessa vida tem um preço, em uma noite sua esposa é levada para o mundo da obra de fantasia que dá nome ao filme, enquanto os vilões da história saem das páginas para o mundo real. Quando finalmente encontra um cópia do raro livro e se prepara para trazê-la de volta, porém, ele é encontrado por Dedo Empoeirado, um maleável cuspidor de fogo que também foi arrancado do mundo de ficção e é capaz de tudo para retornar para sua família e sua mulher, inclusive se reunir ao vilão Capricórnio, líder de uma enorme rede de capangas, que por sua vez não tem interesse nenhum em voltar a sua vida medíocre do livro e vai atrás de Mo e de sua filha, Meggie, para obrigá-lo a trazer tesouros para ele das obras de ficção.

Para uma trama que a bem da verdade vai muito além disso em ramificações e pequenas surpresas, Coração de Tinta conta bastante com o elenco para segurar as pontas e dar mais força aos momentos-chave, levando muitas vezes a decisão ousada do roteiro nas costas e fazendo-o funcionar infinitamente melhor. Começando, é claro, por Brendan Fraser, um pouco fora de seu estereótipo aventureiro de A Múmia para incorporar o personagem que, segundo a própria autora do livro, foi escrito com sua atuação em mente. Ele não tem tanto espaço para exercitar seu poder dramático, mas não chega a decepcionar quem conhece seu talento na construção lenta e elaborada de personagens levados por carisma, transformando Mo em um protagonista complexo, humano, falho e encantador a um único tempo, trabalhando bem sua voz, elemento fundamental na trama, e usando-a aliada com a força de uma interpretação segura para corresponder a todas as expectativas nas cenas em que o dom do personagem é exigido. Por sua vez, a jovem Eliza Bennett, que já havia mostrado talento interpretativo na ação O Agente, segue acima da média e atua na pele de uma Meggie consideravelmente mais dotada de personalidade do que aquela do livro, concedendo a segunda protagonista da trama um pouco mais do que o puro simbolismo dos “olhos do espectador” e estrelando alguns dos momentos mais encantadores e mais aflitivos do roteiro com competência invejável. Por fim, o trio de protagonistas é fechado por um excepcional Paul Bettany, conhecido como o albino Silas da adaptação de O Código da Vinci, que encarna com fidelidade todo o mistério que envolve Dedo Empoeirado no livro e ainda concede a ele o rosto ambíguo e fascinante de um homem com um objetivo que não deixa nada nem ninguém, sejam vilões ou heróis, entrarem em seu caminho. Em última instância, Bettany o torna em um relutante anti-herói numa transição suave da dúvida para uma quase certeza, já que de claro mesmo só há paixão daquele homem, daquela aberração, pelo seu mundo. Isso Bettany sabe traduzir perfeitamente, seja por puro talento ou pela sábia escolha de Jennifer Connelly (O Dia em que a Terra Parou), esposa do ator na vida real, para interpretar sua Roxanne, a mulher do personagem, em um par de cenas idílicas. É claro que a escolha de elenco não para por aí, e ainda temos uma Helen Mirren estranhamente adorável na pele de Elinor, a tia-avó de Meggie que relutantemente se envolve na trama após sua amada biblioteca ser destruída pelos capangas de Capricórnio. Pode parecer estranho para uma atriz de tamanho potencial dramático se tornar um alívio cômico, mas versátil como é, ela faz o trabalho com gosto e justamente por isso surpreende o próprio espectador. Quem faz papel semelhante é Jim Broadbent, que se encontra mais no papel pitoresco do escritor do Coração de Tinta ficcional do que na recente parte que tomou na série Harry Potter, tornando Fenoglio a espécie de mais do mesmo que, nas mãos de um bom ator, se torna o mesmo com um pouco a mais. Por fim, os destaques se fecham com Andy Serkis, o homem por trás do Gollum de Senhor dos Anéis, que faz de Capricórnio uma caricatura ao mesmo tempo repulsiva e compreensível, exagerando quando o exagero lhe é exigido pelo roteiro e fazendo-se mais realista nos momentos finais, quando o verdadeiro e mais arraigado medo de seu personagem é exposto de forma espetacular. Sua atuação é essencial, para a trama e para o clímax, mas é mesmo o trabalho do diretor Iain Softley, mais conhecido por trabalhos conceituais, como o drama de ficção K-PAX, que faz do universo de Coração de Tinta algo tão atraente e realista quanto o descrito por Funke. Sua câmera é equilibrada, sabe quando se servir de alguma histeria e quando acalmar as coisas com cortes elegantes, seu trabalho com os atores é exemplar e a forma como conduz as cenas repletas de efeitos especiais é notável pela fluidez, sem precisar de cortes e ângulos múltiplos para usar a pirotecnia a seu favor e criando um ritmo crescente que agrada aos olhos e a interpretação a cada minuto mais instintiva do espectador. Curto em seus 106 minutos mas bem-amarrado o bastante para não parecer apressado, Coração de Tinta chega a seu final como um dos mais notáveis exemplares de fantasia dos últimos tempos, fora do esquema das grandes séries, e ainda consegue trazer-nos integralmente a sensação de realidade fantástica que, mais do que nunca, cai como uma luva para personagens de mentira que parecem tão reais. Uma pena que os créditos tenham que vir para acabar com a festa, mas a memória vai ficar por muito mais do que meras duas horas de diversão.

Nota: 7,5

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4 comentários:

Anônimo disse...

Eu assisti ele tem um tempinho e achei ótimo. é claro que pensei que fosse bem mais do que foi mas nem por isso deixou de ser bom . Um abraço e uma otima segunda !

Fabrício Bezerra disse...

beleza,com a suas dicas eu ja não espero tanto do filme o quanto eu esperava

Diego Rodrigues disse...

Se sobrar um tempo, devo assistir. Gosto de filmes de fantasia e Brendan Fraser é legal. Portanto, pretendo ver.

Inez disse...

Tem um selinho pra você no meu blog, dá uma passadinha pra pegar.